Indicado ao Oscar, ‘Belfast’ revê infância na Irlanda em conflito
Diretor Kenneth Branagh relembra como a explosão social fez sua vida virar de cabeça para baixo
Buddy (Jude Hill), 9 anos, brinca de luta de espadas com a garotada, no meio da rua, quando um bando feroz se aproxima: está-se no verão de 1969 e a turbulência que há quase um ano agita a Irlanda do Norte vem explodindo na forma de guerra urbana. Na rua de Buddy, como em tantas outras, católicos e protestantes conviveram sempre sem ligar para quem é o quê, mas agora a turba quer depredar e queimar as casas dos vizinhos católicos. Checkpoints erguidos com entulho e arame farpado surgem nas esquinas; valentões se autopromovem a chefes de milícia e intimidam outros protestantes a se declararem inimigos dos católicos. O pai de Buddy (Jamie Dornan) quer levar a família para a Inglaterra, onde já passa longos períodos trabalhando na construção civil, porque prevê que as coisas irão de mal a pior. A mulher dele (Caitríona Balfe) se agarra à esperança e quer ficar: essa rua, esse bairro e essa cidade são tudo o que ela conhece e o lugar em que sempre se sentiu segura e querida.
A inspiração para o Belfast (Reino Unido, 2021) de Kenneth Branagh, em cartaz nos cinemas, é autobiográfica — uma memorialização de como, nessa mesma idade, ele viu sua vida ser virada de cabeça para baixo. É, também, uma reflexão sobre como, ainda que se imagine o pior, é com perplexidade que se vê ele acontecer. Buddy, naturalmente, não consegue atinar com o cisma violento que está partindo seu mundo ao meio. Mas também seus pais e seus avós (Judi Dench e Ciáran Hinds) olham incrédulos para o quebra-quebra, a pancadaria, os coquetéis molotov e a atmosfera de perigo que paira sobre Belfast: como se chegou a esse ponto, e tão rápido?
Não faria mal, aliás, que o filme explicasse um pouco melhor à plateia por que razões o conflito escalou de tal forma no fim dos anos 1960. Um resumo breve: depois de séculos de hostilidades, em 1921 a Irlanda majoritariamente católica se libertou do controle britânico e protestante, mas ao custo de se dividir em duas. Na sua porção do Norte, integrada ao Reino Unido, a minoria católica passou a enfrentar níveis debilitantes de discriminação no emprego e na habitação até que, inspirada no movimento americano pelos direitos civis, organizou-se em reivindicações às quais os lealistas protestantes reagiram com truculência crescente. Em agosto de 1969, o barril de pólvora explodiu. Em questão de dias, o governo norte-irlandês perdeu o controle da situação e apelou aos soldados britânicos para manter a paz, ao que se seguiram três décadas de ocupação militar, confrontos, guerrilha e terror.
Making Sense of the Troubles: The Story of the Conflict in Northern Ireland
Compreende-se que Branagh apenas tangencie as questões políticas e opte por se concentrar no drama de seu pequeno núcleo central; pela origem protestante, sua família não é, para efeitos históricos, a parte injustiçada, e qualquer dissecção do conflito poderia ser tomada como prepotência. Sua delicadeza, entretanto, acaba por ser excessiva: repartindo o ponto de vista entre Buddy e cada um dos quatro adultos, ele dá aos atores bons momentos (excelentes, Dornan e Hinds tiram leite de pedra em papéis minimamente estruturados), mas impede que uma espinha dorsal clara se forme. Até o preto e branco primoroso do diretor de fotografia Haris Zambarloukos paradoxalmente acaba por contribuir para o sabor algo genérico do conjunto. Não fosse a força de Caitríona Balfe como a mãe, Belfast talvez não se sustentasse — mas, em uma manifestação das suas predisposições erráticas, é justamente Caitríona, claro, que a Academia escolheu deixar de fora das indicações do Oscar.
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780
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