No escuro, “Game of Thrones” acaba dando um tiro no próprio pé
Sinal ultracomprimido tornou a Batalha de Winterfell um desespero, no mau sentido. Só o que ficou claro é que, no streaming, a arma decisiva é a tecnologia
Em casa deu até discussão, um evento raríssimo: você está vendo alguma coisa? Não, nada. Então vamos sair do cabo e tentar na HBOGo – não, não adianta, não está carregando; excesso de tráfego. Desista. Não desisto, quero ver. E a coisa seguiu assim, em clima de irritação; o mundo acabando lá em Winterfell e a gente aqui, com as luzes da casa apagadas, espremendo os olhos na tentativa de enxergar através da tempestade de pixels. As reclamações estão vindo de todas as latitudes, e em quantidade muito superior aos comentários sobre os eventos do terceiro capítulo da temporada final de Game of Thrones. Como comentar aquilo que mal deu para entender? Não fosse Melisandre tocar fogo nas espadas dos dothrakis e depois na trincheira ao redor de Winterfell, e a noite de ontem teria sido só sombras. Um terror.
GoT é possivelmente o último fenômeno de massas desta era da televisão, e a derradeira temporada vem batendo recordes de audiência. Os provedores de cabo e de internet, aqui e mundo afora, estão sob pressão para atender o tráfego muito acima da média, e não estão sabendo lidar com ela. Virou um tiro no pé para a HBO, que conseguiu criar níveis sem precedentes de expectativa para a batalha entre os vivos e os mortos mas não conseguiu mostrá-la de fato. No cabo, não só o sinal veio ultracomprimido como também a quantidade de cores foi derrubada; parecia uma fita de VHS gasta. Quando afinal a HBOGo fez o favor de carregar (meia hora depois do término da primeira exibição), a compressão ligeiramente menor me permitiu constatar que eu perdera trechos inteiros da trama. Ser Davos fazendo sinais desesperados a Daenerys para que ela ateasse fogo à trincheira? Isso, e várias outras coisas mais, só enxerguei da segunda vez. Mas, como não sou criatura noturna, nem aí fui capaz de discernir a briga entre o dragão morto e o dragão vivo. E Brienne, morreu ou sobreviveu? Até agora não tenho certeza.
Frustrar expectativas costuma ser um erro fatal para uma série, mas em geral contempla-se apenas o aspecto dramatúrgico – o desfecho pífio de Lost ou, em The Killing, a renúncia ao desfecho na primeira temporada. O streaming, porém, é um triunfo da conveniência tanto quanto do conteúdo, e o limiar de tolerância para falhas técnicas fica cada vez mais baixo. Na temporada 2018-2019, a HBO vem dando de goleada na Netflix no que diz respeito a conteúdo. Mas a interface da Netflix, a sua velocidade e estabilidade e a eficiência dos seus algoritmos de compressão deixam toda a concorrência no chinelo. Assisto a muita coisa na Amazon – estou adorando Bosch –, mas é porque me armo de paciência para as interrupções e as quedas de resolução. E, não fosse o interesse ter vencido a irritação, e eu ontem teria mandado a HBO cabo e a HBOGo passear: como é possível que uma rede que tem um patrimônio como GoT, e que precisa dele para assegurar sua continuidade, deixe a ineficácia tecnológica derrotar em tal grau o seu conteúdo?
David Benioff e D.B. White, os criadores de GoT, imaginaram para o episódio 8-3 uma soma de todos os medos: uma noite profunda da qual o pavor sai sem se anunciar, e na qual o fogo tanto salva quanto destrói. Bonito – na ideia, no silêncio das primeiras cenas com milhares de homens e de cavalos enfileirados, imóveis, no campo gelado, e bonito na trilha que era quase que só um pulso. Era para se tornar magnificamente terrível quando o caos afinal começa a desabar sobre Winterfell. Mas a compressão não entrou no cálculo criativo, e na hora em que o mundo caiu o espectador já via menos até do que os personagens. Entre a ansiedade e a decepção, ficou fatalmente prejudicada a ideia central do episódio, de que até as trilhas mais tortuosas (como a de Arya e a de Theon, lindamente interpretado na sua despedida por Alfie Allen) são o caminho certo para o destino que se tem reservado. Se não acertar o passo, a HBO vai, GoT à frente, para um destino que não agrada a ninguém: se ontem foi assim, como é que vai ser em 19 de maio?