“Dirty John” e as mulheres que caem em ciladas
Baseada em um caso real, série da Netflix é apenas mediana, mas expõe as vulnerabilidades do sonho romântico
É claro que pode acontecer (e acontece) com homens – a mulher que revela ter ciúme doentio, ou isola o parceiro dos amigos e da família, ou vai embora com tudo, ou não se conforma com a separação e dedica a vida a atormentá-lo. Mas acontece mais – muito mais – com mulheres do que com homens, e aí não é incomum que intimidação e violência façam parte do programa. A questão é, pode acontecer com qualquer uma? Claro que sim; algumas pessoas são ótimas em esconder suas verdadeiras cores. Mas a ingenuidade faz as chances aumentarem. E, assistindo a Dirty John, uma novela/thriller da Netflix de qualidade mediana para baixo, mas de potencial quase irresistível para a maratona, minha vontade era dar um chacoalhão na protagonista e dizer, moça, não é possível que nesta altura da vida você vá cair na conversa desse sujeito, porque está na cara que ele é uma fria (na cara mesmo: no papel de John Meehan, o “John Sujo” do título, Eric Bana não economiza no olhar de sociopata). Mas, sim, ela cai – a série é inspirada em um caso real reportado pelo jornal Los Angeles Times. Antes fosse um caso isolado, mas não. Ontem, saiu a notícia horripilante de uma brasileira que foi espancada quase até a morte, por quatro horas, no primeiro encontro com um sujeito com quem havia meses conversava online. O erro inocente dela: achou que já o conhecia o suficiente e convidou-o para jantar em sua casa.
Atire a primeira pedra a mulher ou o homem que, vivendo em solidão, não quis um dia acreditar em um lindo romance sem ter evidências para tanto. Ou até tendo evidências que desmentem essa possibilidade. Vejamos: em Dirty John, Debra Newell interpretada pela linda e classuda Connie Britton, conhece John Meehan pela internet, o que já deveria, sim, ser motivo para alerta. Aceita que ele vá pegá-la em casa para o primeiro encontro; ele descaradamente aproveita para avaliar o imóvel (caro) e a decoração (de bom gosto); Debra se convence de que ele está elogiando sua casa para ser gentil. Durante o jantar, ele conta histórias da carochinha (por exemplo, que foi dos Médicos Sem Fronteiras) e então diz, “mas não vamos falar de mim, vamos falar de você”. É o truque mais falso e mais manjado do mundo, mas Debra acha encantador. Na volta, deixa John entrar de novo no seu apartamento, troca beijos e, ao se ausentar por dois minutos, encontra-o estirado na cama dela, dando nota para o colchão. Aí ela finalmente acha que ele está sendo abusado, e pede que ele vá embora. John levanta de cara fechada e, sem dizer palavra, bate a porta atrás de si. Mas depois liga com uma conversinha esfarrapada, e Debra aceita o pedido de desculpas. Em seis semanas, está casada. E aí, devagarinho mas com intensidade crescente, começa o inferno. Do qual, a certa altura, ela consegue sair, só para voltar logo em seguida, porque “pobre John, ele não tem mais ninguém no mundo”.
É importante frisar que, na série, Debra está na virada dos 40 para os 50, foi casada quatro vezes antes e construiu sozinha um negócio bem-sucedido de decoração, com o qual cuidou por conta própria do filho e das duas filhas, agora adultos. Sua família passara ainda por uma tragédia que a deveria ter prevenido para os perigos de gente que recorre à manipulação emocional. Digo isso para envergonhar ou menosprezar Debra pelas sucessivas falhas de julgamento e pela resistência a aceitar os avisos antipáticos mas pertinentes de suas filhas? De maneira nenhuma: a solidão pode ser árdua, e o desejo de encontrar amor ou companhia às vezes turva a lucidez e torna as pessoas vulneráveis. E não sei se as mulheres são mais ingênuas do que os homens – mas certamente podem ser mais vulneráveis. Em geral, também, idealizam mais o amor, e se prontificam mais facilmente a perdoar e a achar pretextos para justificar o mau comportamento de um parceiro, mesmo quando ele afeta pessoas que estão fora da relação. É desanimador, em suma, ter de tirar uma lição de Dirty John, mas ela existe: enquanto as meninas forem encorajadas a esperar que romances de contos-de-fada as arrebatem, a aceitar em vez de contestar e, principalmente, a conviver com atitudes machistas ou possessivas de pais e irmãos como se essa fosse uma situação de normalidade – o que pressupõe um exemplo negativo das próprias mães –, elas vão não apenas se sentir indefesas, mas potencialmente ser indefesas de fato. Vida adentro, e apesar da experiência e da independência financeira. Debra Newell aparece em Dirty John como uma mulher muito meiga, muito conciliadora e até tímida. Mas provou ter uma coragem danada ao expor sua história.