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O voto sobre as cinzas da razão

Não há para onde correr quando a escolha que se desenha nestas eleições se dá entre o aviltamento da linguagem e a linguagem do aviltamento

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 out 2018, 15h56 - Publicado em 5 out 2018, 15h27

O presidente da República merece morrer queimado, disse um amigo meu.

Foi nos dias seguintes ao incêndio do Museu Nacional,  que em uma só noite consumiu o patrimônio de séculos. Pois esse amigo meu julgou que o modo mais apropriado de externar seu horror seria exigindo uma reparação extrema às autoridades em cujo turno se perdeu parte substantiva de nossa herança histórica: foi ao Facebook afirmar que Michel Temer e seus colaboradores mereceriam morrer queimados.

(Para ser justo, convém notar que “morrer queimado” é paráfrase minha. Arder foi o verbo empregado. Temer e todos os “golpistas”, dizia o post, merecem arder — em chamas, depreende-se, como o museu.)

Faz anos que não vejo esse amigo pessoalmente. Temos tido eventuais discordâncias pela rede social, às vezes acaloradas (sobretudo da minha parte, admito), mas dentro dos limites da civilidade. Sempre me pareceu pessoa cordata e sensata. Pois essa pessoa cordata e sensata diz que o presidente da República, seus ministros e colaboradores merecem arder. E ainda especificou: “arder, para além de qualquer metáfora” — frase um tanto tortuosa, mas que interpreto como “arder literalmente, com fogo de verdade” (chamado à responsabilidade pelo que disse no espaço de comentários, o autor do post depois renegaria a intenção de queimar políticos em praça pública, mas não apagou o post em que pede  quase isso).

A revolta de meu amigo parece ter sido detonada pela nota em que o MEC lamentou o ocorrido e declarou que “não medirá esforços” para reconstruir o museu. O texto, de uma fatuidade fria e protocolar, omite a questão fundamental: quem deve responder pela perda de um dos mais importantes acervos antropológicos e científicos do Brasil e pela destruição do prédio histórico que abrigava tal acervo, um palácio que já servira de residência a D. João VI? Meu amigo encontrou de imediato os responsáveis pelo crime e não perdeu tempo na prescrição da sentença. Não parece ter lhe ocorrido que o suplício da morte na fogueira representa a própria negação dos ideais civilizatórios que um museu procura encarnar.

O uso da palavra “golpista” em um contexto político no qual não se viu sombra de golpe denuncia as simpatias ideológicas do amigo incendiário. Seu discurso rábido no Facebook espelha uma das contradições em que o partido de que ele é devoto vive enredado. O PT – já estará claro que é dele que falamos –  apresenta-se como vítima de um difuso ódio das elites intolerantes, ao mesmo tempo em que expressa esse vitimismo em termos sempre divisivos e não raro violentos. Em diferentes ocasiões, expoentes do partido disseram que os adversários precisam “apanhar nas ruas e nas urnas”, e convocaram fantasmáticos “exércitos” para suas batalhas, e ameaçaram o país com derramamento de sangue caso a justiça levasse a termo (como de fato levou) a condenação de seu líder máximo pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Simpatizantes do partido não só se fazem de surdos a essa truculência verbal, como adotam a mesma linguagem na conversa cotidiana sobre temas públicos. Aqueles que invocam o espírito de Torquemada contra Temer (ou contra FHC, Aécio, Moro, a imprensa…) mostram-se incapazes de perceber a gravidade do que dizem, e é assim porque estão demasiado imersos na retórica petista.

Depois de anos em que toda e qualquer crítica era traduzida como manifestação de ódio e preconceito, é apenas natural que o ódio e o preconceito assumam o papel da crítica. Antigamente abrigado pelo PP, uma das siglas que compôs a base de apoio do governo Lula, Jair Bolsonaro, já foi dito por bons analistas, é uma criação do petismo, sua necessária antítese dialética. A insidiosa hipocrisia do discurso virulento que só denuncia o ódio do outro defronta-se com o cinismo ostensivo que se compraz no vocabulário da violência. Quando os verbos fuzilar, metralhar, estuprar sobem ao palanque, o vagamente literário arder que meu amigo usou na rede social perde a força expressiva. Também cai ao chão, débil e desdentado, o xingamento com que certa esquerda gostava de desqualificar seus adversários — fascista!

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O fracasso do movimento #EleNão em deter a subida de Bolsonaro nas pesquisas demonstra que a esquerda brasileira criou uma versão muito estranha da velha fábula: depois de anos uivando e rosnando, não sabe mais gritar “lobo”.

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“Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas.”

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Graciliano Ramos, escritor (Biblioteca Nacional/Dedoc)

A citação é de Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere. Proponho ao leitor que releia a frase abstraindo o sujeito criticado pelo comunista alagoano. Não é o capitalista que importa aqui, mas a ideia de que, no embate político, o bruto é um inimigo mais tolerável do que o inteligente. Graciliano estará certo ao afirmar isso? Seu argumento valerá para todas as situações?

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Figure o bruto instalado em uma posição de poder, exercendo esse poder com a mais brutal brutalidade (o bruto será sempre tautológico). Imagine, por contraste, a inteligência canalha premiada com a mesma posição de mando, dissimulando sua safadeza sob uma fina camada de verniz iluminista e corrompendo outras inteligências igualmente canalhas.

Suponha que você tenha de escolher entre esses dois polos complementares —  entre o bruto que promoverá a ignorância e a inteligência cavilosa que perverterá o pensamento. Suponha que essas são as únicas alternativas disponíveis.

O que você escolhe quando se esgota toda escolha?

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No twitter, Fernando Henrique Cardoso lembrou de uma pitoresca anedota sobre o museu destruído: “O Museu Nacional pegou fogo. Parte da memória antropológica sumiu. Ruth tinha mais ligações com os professores de lá que eu. Há quase 20 anos mandei duas vezes verba para concertar o telhado: chovia nas múmias. A primeira se perdeu. Descaso de todos e burocracia de sempre”. (Podemos relevar o o “concertar” com C; o tuiteiro retratou-se pelo erro em um comentário.)

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O estilo do ex-presidente é inconfundível e insuperável: sempre o tom altaneiro que lembra um cronista-viajante visitando o Brasil no século XIX. Olha ali as múmias encharcadas de chuva! E essa verba que se perde, que coisa mais tipicamente tropical! Ah, são tão pitorescos esses burocratas que dissipam dinheiro público!

Pois FHC, a última missão francesa ao Brasil, é apenas mais um a documentar os problemas crônicos do museu. O incêndio era, para repisar o triste clichê, uma tragédia anunciada, e Temer calhou apenas de ser o último dos presidentes que talvez pudesse ter feito algo a respeito e não fez nada (para nem falar na responsabilidade da UFRJ, responsabilidade de que o reitor Roberto Leher, em artigo na Folha de S. Paulo, empurra para os vilões de sempre – os “círculos do poder”, o capital financeiro, a indústria do entretenimento, a imprensa -, parando a um passo de sugerir que o incêndio veio salvar o museu da “mercantilização”.)

No entanto, no Facebook de outros tantos amigos, somente Temer foi condenado à fogueira. A faísca que deu início ao incêndio, muitos diziam, foi o “golpe”. Esta é uma perversão da cultura pública brasileira que, até aqui, apenas o PT conseguiu promover: reduzir tudo a seus interesses mais imediatos e mesquinhos. Um acervo insubstituível se perde, um tesouro de valor universal, e a reação reflexa da militância é aproveitar o desastre para reforçar o batido slogan “Fora Temer!”.

Jair Bolsonaro, chamado a se pronunciar sobre o assunto, respondeu com a costumeira delicadeza: “Já pegou fogo, quer que eu faça o quê?”. Esse descaso não lhe terá custado um só voto. Foram grosserias como esta, ou piores,  que consagraram o candidato do PSL como a cara do anti-establishment. Alheio ao vexaminoso empurra-empurra de responsabilidades entre universidade e governo e distante das platitudes decorosas em notas oficiais lamentando o desastre, Bolsonaro apenas dá de ombros.

Queimou, acabou, uma coisa a menos com que ele terá de se preocupar se for eleito.

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Mario Vargas Llosa
Mario Vargas Llosa, ao centro,  em evento da campanha à presidência do Peru, em 1990 (H. John Maier Jr./The LIFE Images Collection/Getty Images)

Em contraste com as inflamadas diatribes de muitos bolsonaristas nas redes sociais, episódios de violência física até o momento têm sido pontuais, e só podemos esperar que prossiga assim. A vítima mais notória foi, ironicamente, o próprio Bolsonaro, esfaqueado em Juiz de Fora por Adélio Bispo de Oliveira, ex-militante do PSOL.

Minutos antes do ataque, o capitão, carregado pela multidão de seguidores mineiros, era a imagem viva da felicidade. A cena me trouxe à memória certas passagens de Peixe na Água, o excepcional livro em que Mario Vargas Llosa intercala memórias de infância e  juventude com o relato de sua malograda tentativa, em 1990, de se eleger presidente do Peru com uma plataforma liberal. Llosa conta no livro que detestava ser carregado pelo povo. Homem do debate intelectual, tampouco apreciava o contato direto com a multidão que seus estrategistas recomendaram na campanha de segundo turno:

“Não tinha — e não tenho — apetite para esses banhos de multidão, e era obrigado a fazer milagres para ocultar o desagrado que me produziam aqueles puxões, empurrões, beijos, beliscões e manuseios semi-histéricos e para sorrir, mesmo quando sentisse que aquelas demonstrações de afeto estavam triturando meus ossos ou deslocando algum músculo.”.

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Um leitor contaminado pela propaganda ideológica talvez interprete a passagem acima como uma ilustração desse grande personagem das fan-fics petistas: o membro da elite branca neoliberal que odeia pobre. Mas não há desprezo pelo povo nessas linhas: Llosa apenas admite, com singela sinceridade, que o contato direto e prolongado com a multidão não lhe parecia experiência das mais agradáveis. Não se pode acusar de populista todo e qualquer político que se sinta confortável em comícios, passeatas e carreatas — mas é certo que o político que não guarda especial apreço por manifestações de idolatria popular jamais será um populista.

Mario Vargas Llosa, no entanto, não é sequer político. Trata-se de um escritor que cometeu a temeridade de embarcar em uma campanha partidária, para defender uma plataforma liberal. Perdeu a eleição para o nefasto Fujimori.
Em recente entrevista nas páginas amarelas para minha colega Ana Clara Costa, o autor de Conversa na Catedral lembra que não basta implantar medidas de abertura econômica para fazer um governo liberal: “A liberdade é inseparável do liberalismo”. Paulo Guedes, fiador de Bolsonaro no mercado, abraçaria esse princípio?

***

Encerro este texto na tarde de sexta-feira, 5 de outubro. A votação será no domingo. As pesquisas mais recentes indicam um segundo turno entre Fernando Haddad, o ungido de Lula, e Jair Bolsonaro, o “mito”. Se assim for, será um pleito sobre as cinzas da razão. O partido cuja política sempre dependeu do aviltamento da linguagem enfrentará o populista que só sabe falar a linguagem do aviltamento.

 

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