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Eu acredito em Woody Allen

O diretor é mais uma vez acusado de ter abusado da filha em 1992. A justiça americana nunca encontrou solidez no caso, mas Hollywood ensaia seu justiçamento

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h27 - Publicado em 19 jan 2018, 22h10

(Nota prévia: quase sempre, o autor do blog só encontra seu título depois do texto escrito. Este foi um raro caso em que já o tinha definido desde o início – trata-se de uma inversão do slogan hollywoodiano “I believe in Dylan”, de que falo abaixo. A redação do texto já andava bem avançada quando amigos começaram a postar, no Facebook, o texto de um site português – ou sítio, como dizem lá  – com o mesmo título. Reconheço que cheguei tarde, mas, por preguiça, mantenho o título já usado por Alexandra Lucas Coelho. Aliás, o ensaio de Alexandra – link aqui –  é excelente. Temos, creio, mais pontos em comum além do título.) 

Antes de considerar acusações que nunca foram comprovadas mas que ainda pairam sobre ele, vamos começar pelo que Woody Allen comprovadamente fez.

Em 1992, já bem entrado na casa dos 50, Woody Allen começou um relacionamento com a enteada de 19 anos, Soon-Yi Previn, filha adotiva de Mia Farrow e do pianista e maestro André Previn. Falo em “enteada” com algum a liberdade: Mia e Allen nunca se casaram legalmente, nem  sequer moraram juntos. Mas mantiveram, por mais de uma década, um relacionamento estável na intimidade e nas telas (ela atuou em treze filmes de Allen). Adotaram Dylan e Moses e tiveram um filho biológico, Ronan (se bem que Mia Farrow já tenha insinuado que Ronan seria na verdade filho de Frank Sinatra).

Palhares, o personagem das crônicas de Nelson Rodrigues, era chamado de canalha porque não respeitava nem a cunhada – certa feita, tascou-lhe um beijo no pescoço. Uma ligação erótica com a enteada adolescente pontuaria mais alto em uma escala rodriguiana de canalhice? Talvez. Mas a relação entre o diretor de Hannah e suas Irmãs e a filha de Mia foi consensual (aliás, estão até hoje casados), enquanto Palhares, ao que parece, beijou a cunhada à força. O julgamento moral é livre em blogs e mesas de bar, mas será sempre só o julgamento pessoal de cada: o que Allen fez pode ser reprovável, mas não é um crime. Nem é, em absoluto, pedofilia, que manuais psiquiátricos como o DSM costumam definir como a atração sexual por crianças pré-pubescentes. Soon-Yi já havia ultrapassado essa fase.

É notável, aliás, que todos os julgamentos morais sobre o episódio recaiam somente sobre Woody Allen: quem comete o pecado é o padrasto que tem um caso com a enteada, e não a enteada que tem um caso com o padrasto.  Desconfio que neste ponto pesam ancestrais preconceitos sexistas: a jovem mulher é necessariamente a donzela ingênua, uma tonta sem discernimento algum, e como tal facilmente seduzível pelo velho macho predador. Tivéssemos, no mesmo enredo, uma madrasta e um enteado, os julgamentos morais seriam os mesmos?

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As escandalosas circunstâncias do rompimento com Mia Farrow ainda ferviam nos tabloides em agosto de 1992, quando Woody Allen visitou os filhos na casa de campo da atriz  – ela havia saído para fazer compras -, no estado de Connecticut. Mia Farrow acusou o ex de ter se aproveitado da ocasião para abusar sexualmente de Dylan Farrow, então com sete anos. A atriz gravou um depoimento da filha em vídeo, mas a narração do alegado abuso não saiu em linha reta e clara: o vídeo tem vários cortes, o que abre a suspeita de que Mia Farrow estaria, entre um e outro momento de gravação, “treinando” a filha para descrever uma cena de abuso. Há outras tantas inconsistências na história: a babá que diz não ter ficado mais de cinco minutos longe de Dylan, a alegação não-confirmada de que a calcinha da menina sumiu depois da visita do pai, e até o cenário do abuso, um sótão que os membros da família não costumavam frequentar. Uma equipe do Hospital Yale-New Haven examinou o caso e concluiu que Dylan não foi abusada. Restariam duas hipóteses: ou a criança, sob a pressão dos conflitos familiares que então estava vivendo, fantasiou o caso, ou alguém próximo – Mia, naturalmente – criou a história e a impôs à menina. O promotor sensatamente decidiu encerrar o caso (tempos depois, alimentando a fogueira de especulações conspiratórias, declarou que na verdade haveria “causas prováveis” para levar o processo adiante).

Por que um caso de 1992 já investigado e encerrado voltou à tona? Porque Dylan, hoje com 32 anos, voltou a se manifestar sobre o episódio recentemente, primeiro em um artigo no Los Angeles Times, e depois em uma entrevista ao programa CBS This Morning. Não é a primeira vez que ela reitera as acusações em idade adulta: já o fizera antes em 2013, entrevistada para um perfil laudatório de Mia Farrow na Vanity Fair, e ano seguinte, um uma carta aberta ao The New York Times. Na entrevista televisiva, ela diz que sua versão do caso tem sido silenciada e desacreditada, mas isso não é exato: em todas essas ocasiões, ela deu sua versão dos fatos, e houve sempre quem acreditasse nela. No Los Angeles Times, é Dylan quem tenta “desacreditar” seu irmão mais velho, Moses, que vem sustentando que Mia martelou a história de abuso nos ouvidos da filha. Dylan descarta como “irrelevante” o que o irmão diz, pois ele “não estava lá durante o alegado abuso”.

Este é exatamente o problema: afora os dois implicados, que hoje têm versões discordantes da história, ninguém estava lá.

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O documentarista Robert B. Weide, que fez um um programa sobre Allen na PBS mas não é do círculo íntimo do cineasta, escreveu o artigo mais lúcido, sereno e bem-fundamentado que já encontrei sobre o assunto, publicado em 2014 no site The Daily Beast. Os fatos que ele compila ali apontam para um caso típico de alienação parental (a conclusão, especulativa, é minha, não de Weide). Eu acredito em Woody Allen quando ele nega o abuso. Não sei o que aconteceu lá, mas a versão mais verossímil aponta para a inocência do cineasta. E antes que se diga que estou “culpando a vítima”, convém observar que não se é vítima só de abuso e estupro: também existem vítimas de falsas acusações de abuso e estupro.

Dylan Farrow
Dylan Farrow detalha suas alegações de agressão sexual contra Woody Allen (CBS This Morning/Youtube)

Ao afirmar que acredito em Allen, não estou insensível ao que Dylan diz. Há sofrimento autêntico na entrevista que ela deu ao CBS This Morning. No programa, ela chora quando assiste a um depoimento de seu suposto agressor. As razões da dor podem ser reais, ou imaginárias, ou plantadas em sua memória pelo rancor que a mãe tinha do ex – mas o que vemos ali é, em qualquer hipótese, dor, e dor não é coisa a ser desprezada. No entanto, por mais delicados que tentemos ser ao tratar do caso, é preciso reconhecer a exploração sentimental que se fez sobre ele. Os olhos úmidos e as palavras candentes de Dylan têm o apelo certo para o gênero de programa matinal criado por Oprah Winfrey. É o sensacionalismo sensível: uma espécie de psicoterapia vagabunda, na qual se sugere que o sofredor encontrará algum tipo de conciliação só por tomar a corajosa atitude de expor suas mágoas diante de um entrevistador compassivo. Em geral, isso dá boa audiência, mas mau jornalismo.

O caso dificilmente voltará à justiça, mas já se avista um ato coletivo de justiçamento: atores e atrizes que trabalharam com Woody Allen, de Selena Gomez a Colin Firth, agora dizem se arrepender da experiência. O diretor de Zelig A Rosa Púrpura do Cairo corre sério risco de se tornar um pária em seu meio profissional. Assim é porque a acusação voltou a público em momento muito propício – na esteira da divulgação de incontáveis casos de abuso e assédio em Hollywood (Ronan Farrow, aliás, foi um dos jornalistas que trouxeram o caso de Harvey Weinstein à tona, na New Yorker). Dylan, no Los Angeles Times, deu a senha para a temporada persecutória. O movimento #MeToo, dizia ela, conseguiu avanços revolucionários, mas “a revolução é seletiva”: seu pai abusador ainda não fora levado ao merecido ostracismo.

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A estocada final na desconstrução de Woody Allen veio no início do mês em um ensaio do mais estreito puritanismo publicado no The Washington Post. O autor, Richard Morgan, leu manuscritos e documentos de um acervo que Allen abrigou na Universidade Princeton, e concluiu, com base em esboços e anotações pessoais do diretor, que ele é um misógino obcecado por mulheres jovens. Como crítica cinematográfica, o texto não decola do mais tosco reducionismo biográfico – esquece que muitos homens são obcecados por mulheres jovens, mas só um deles foi capaz de filmar Manhattan. 

Como seria de se prever, Morgan não deixou de aludir, no meio do texto, às acusações de Mia e Dylan, borrando a diferença substancial entre o homem que sente atração sexual por mulheres jovens e aquele que sente atração por crianças. A “revolução”, afinal, não pode se deter nessas distinções finas. E nem nas distinções grossas, como a que separa o assédio sexual e o abuso de crianças, ambos crimes, claro, mas de natureza diversa. Também diversas são a situações de Weinstein, cujos numerosos casos de assédio estão documentados em vários depoimentos, ainda à espera de consequências jurídicas, e de Woody Allen, acusado por uma ex-amante magoada por um único caso de abuso em 1992 – um caso que não teve prosseguimento na justiça porque não se encontraram evidências para sustentá-lo.

***

 

Atores e atrizes que já trabalharam com Woody Allen agora são intimados a renegá-lo. Justin Timberlake declarou solidariedade ao #MeToo e logo foi chamado de hipócrita. O astro pop foi tocado pela Peste quando atuou em Roda Gigante (excelente filme que foge completamente ao esquema mulher-jovem-atraída-por-tiozão que Morgan tentou esmiuçar em seu artigo: aqui temos um homem jovem inicialmente atraído e seduzido por uma mulher mais velha).

Para encerrar, vamos, então, falar de hipocrisia.

Não há hoje nenhum fato novo na mesa, e nenhum dos atores que agora se declara arrependido por trabalhar com Woody Allen pode alegar desconhecimento sobre um caso que ganhou ampla cobertura pela imprensa. Por que só agora, depois de terem juntado o até pouco tempo prestigioso nome de Woody Allen a seu currículo, eles o renegam? Porque agora pega mal associar-se a Woody Allen. La Rochefoucauld, um enfarado aristocrata francês do século XVII, famosamente definiu a hipocrisia como o tributo que o vício paga à virtude.  O tributo atualmente é cobrado na forma de doação do cachê para a causa do #MeToo.

Há tributos dissimulados. Natalie Portman, no meio de um grupo de atrizes entrevistadas pela ubíqua Oprah Winfrey no  CBS This Morning, declarou: “Eu acredito em você, Dylan”. Mas em 2009, quando Roman Polanski foi preso e ameaçado de deportação para os Estados Unidos, a atriz subscreveu o abaixo-assinado que pedia a libertação do diretor. Esteve em ótima companhia: também assinaram Martin Scorcese, Walter Salles, Pedro Almodóvar e… Woody Allen.
Para lembrar o caso: em 1977, durante uma festa na casa de Jack Nicholson (que não estava presente) em Los Angeles, Polanski embebedou e drogou uma garota de 13 anos, Samantha Gailey, e depois fez sexo  com ela – em várias modalidades: oral, vaginal e anal. No julgamento, ele se declarou culpado, mas fugiu dos Estados Unidos antes de ser sentenciado. 

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A revolução é mesmo muito seletiva.  

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