No Dia da Libertação, historiador destaca memórias e feridas da Coreia
Emiliano Unzer analisa como os 35 anos de domínio japonês impactaram a política, a economia e a identidade cultural do país

Autor do recém-lançado Filhos de Céu e da Ursa, que narra a história da Coreia até o século XX, o professor Emiliano Unzer será um dos destaques da programação especial do Dia da Libertação da Coreia, em São Paulo. Titular de História da Ásia na Universidade Federal do Espírito Santo, ele participa de um debate no Centro Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro, ao lado de outros especialistas coreanos. A agenda comemorativa, organizada pelo Centro Cultural Coreano no Brasil, dirigido por Kim Cheulhong, inclui ainda apresentações no MASP, com o artista Samukera, que mistura k-pop e rap, e Jhony Bigodi. Para falar sobre a importância da data, Emiliano Unzer conversou com a coluna Giro pelo Oriente.
Ao olhar para os 35 anos de ocupação japonesa, quais foram os impactos mais profundos (políticos, econômicos ou sociais) que a Coreia enfrentou? Quando falamos daqueles 35 anos, entre 1910 e 1945, não nos referimos apenas a um domínio militar ou a uma mudança de bandeira no palácio. Foi uma imersão forçada num projeto de apagamento — político, cultural, psicológico. Um controle que tocou a medula do que significava ser coreano.
Politicamente, o país deixou de existir como Estado soberano. Não foi simples substituição de líderes, mas a desmontagem peça por peça da monarquia da dinastia Joseon, das leis, da educação própria. O poder estava nas mãos de governadores coloniais com autoridade absoluta, e qualquer voz dissonante era calada com violência. E, apesar dos protestos de muitos coreanos, isso tudo foi explicitamente ignorado pelas potências vencedoras da 1ª Guerra Mundial nas Tratativas de Paz de Versalhes de 1919.
Na economia, um paradoxo. Vieram estradas de ferro, fábricas, escolas — mas não para a Coreia florescer como nação, e sim para servir ao motor imperial japonês. A prosperidade que se anunciava seguia um percurso desigual: acumulava-se nas mãos de japoneses e de uma elite colaboracionista, enquanto agricultores coreanos eram expulsos de suas terras para se tornarem arrendatários em solo que antes lhes pertencia.
Mas o golpe mais fundo talvez tenha sido o simbólico. A língua proibida nas salas de aula, jornais censurados, nomes coreanos substituídos por japoneses. É uma espécie de violência que não deixa apenas cicatrizes na pele, mas corrói a narrativa de um povo, sua memória. As lembranças dos coreanos contra os japoneses ao norte do paralelo 38, na Coreia do Norte, são igualmente duríssimas.

Quais elementos dessa ocupação ainda estão presentes, de forma direta ou indireta, na Coreia contemporânea? As marcas continuam ali — nas pedras das estações de trem, no traçado dos portos, no próprio ar das cidades. Algumas estruturas erguidas no período colonial ainda servem, curiosamente, como base para a Coreia moderna. O “milagre econômico” dos anos 1960 e 70, por exemplo, durante os anos de governo do General Park Chung-Hee – graduado nas academias militares japonesas – reutilizou parte dessa infraestrutura, mas a transformou em algo próprio, ressignificado.
Já outras heranças são feridas abertas. A questão das mulheres de conforto é, talvez, a mais dolorosa. Jovens (muitas, menores de idade) arrancadas de suas casas, submetidas à escravidão sexual, e que até hoje não receberam das autoridades japonesas um pedido de desculpas que seja proporcional à gravidade do crime. É uma dor que atravessa gerações.
E há o ressentimento — a percepção de que o passado ainda é, às vezes, minimizado ou reescrito nos livros escolares japoneses. Para muitos coreanos, e para a humanidade, isso é uma afronta à dignidade da memória. Por isso, a defesa da língua, dos rituais e da história coreana é hoje mais que tradição: é uma resposta.
Saberia dizer quais símbolos, datas ou rituais mantêm viva essa memória na sociedade coreana atual? Talvez o mais eloquente seja o Gwangbokjeol — o Dia da Libertação Nacional, em 15 de agosto: “O dia em que a luz voltou.” Não há metáfora mais precisa para traduzir o fim daquela longa noite. Espalhados pelo país, museus como o da Independência ou o de Seodaemun — este último, numa antiga prisão colonial — mostram celas estreitas, objetos de tortura, cartas de prisioneiros. Não é o culto ao sofrimento, mas o valor de resistir.
Outro símbolo comovente são as estátuas das mulheres de conforto: jovens sentadas, olhar fixo, silêncio que fala mais que qualquer discurso. Muitas encaram diariamente as fachadas de embaixadas japonesas, lembrando que a cobrança por justiça não cessa.
E há as manifestações da sociedade sul-coreana, desde estudantes a jornalistas e intelectuais, como as do Levante de Gwangju de 1980, as de junho de 1987, até as mais recentes contra as tentativas de golpe do ex-presidente Yoon Suk Yeol em dezembro de 2024. São atos que, somados, erguem um muro contra o esquecimento e a opressão.
A Coreia de hoje exporta K-pop, cinema e gastronomia para o mundo inteiro. O senhor vê alguma relação entre essa projeção cultural atual e o histórico de resistência cultural contra o domínio japonês? Sim, ela é visceral. Durante a ocupação, falar coreano podia custar caro. Publicar um livro em hangul, celebrar ritos ancestrais, ensinar a própria história — tudo isso, por muito tempo, foi proibido ou desencorajado. Apenas um exemplo disso. Durante o período do governador-general japonês, Minami Jirō, foi formalizada a prática conhecida como kyūjō yōhai, com a Terceira Lei Educacional Chosŏn em 1938. Todos os alunos coreanos eram obrigados a se curvar em direção ao Palácio Imperial Japonês, em Tóquio, nas escolas.
Por isso, quando a Coreia hoje se afirma com seu idioma nas músicas que chegam às paradas globais, ou em filmes com alcance global, há uma dimensão de reparação. Não é apenas mercado: é a proclamação ao mundo de que o que tentaram silenciar agora ecoa mais alto que nunca. É uma forma de expressar a sua “coreanidade”, depois de tantas décadas de brutal supressão.
Ao longo da sua pesquisa para o livro, houve algum episódio ou documento relacionado à ocupação que o surpreendeu especialmente? Sim. A história de Yu Gwan-sun é daquelas que marca. Uma estudante de 16 anos que, no Movimento de 1º de Março, em 1919, ergueu a voz pela independência. Foi presa, torturada, morreu na prisão. Mas deixou cartas. Nelas, o que impressiona é a potência e determinação: ela não falava apenas contra os japoneses, mas a favor de um futuro em que crianças pudessem crescer falando sua língua, meninas pudessem estudar, e a dignidade fosse um direito, não um privilégio.
Foi daí que nasceu o título “Os filhos do céu e da ursa”. Céu porque evoca esperança e liberdade; Ursa porque resgata o mito fundador coreano. E filhos porque são todos herdeiros de deuses do céu, de Hwanung, e descendentes de Dangun, o primeiro soberano da dinastia Gojoseon, e filhos da ursa mãe, Ungnyeo. São herdeiros dessas forças cósmicas que permeiam as páginas mitológicas contadas na obra do século 13, o Samguk yusa.