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Tempos orwellianos

A liberdade não é valor que deva pagar pedágio a simpatias de um lado ou outro

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 28 set 2024, 08h00

A.G. Sulzberger é o chefão do New York Times. Tipo jovem, herdeiro de longa tradição familiar no comando do jornal mais influente do mundo. Sua gestão no Times é controversa. Em 2020, Bari Weiss, uma jornalista brilhante, que havia sido contratada para dar um toque mais “diverso” ao diário (leia-se: um pouco menos à esquerda), se demitiu. Disse que andava cansada de ter que publicar o “4 000º artigo dizendo que Donald Trump é o único risco para o planeta”. Coisa parecida aconteceu com James Bennett, outro editor, que se arriscou ao publicar o artigo do senador Tom Cotton criticando protestos violentos no rastro do assassinato de George Floyd. Foi para a rua, depois escrevendo uma dura crítica ao perfil ideológico do jornal. Lembro dessas coisas para dizer que não me surpreendeu muito ler o texto de Sulzberger, esta semana, dizendo (adivinhem!) que Trump é de fato um incrível risco à liberdade de imprensa e, logo, à democracia e à civilização. Tudo obviamente no calor da eleição americana. Bari Weiss, ao que parece, tinha razão.

O artigo chamou atenção porque fala do Brasil. Sua parte mais curiosa é acusar Trump de ter propagado a expressão “fake news”, que teria depois dado a uma penca de países autoritários a desculpa ideal para fazer “leis sobre notícias falsas”. Leis destinadas a combater a desinformação, mas que serviriam para “permitir que os governos punam o jornalismo independente”. Quem viveu no Brasil dos últimos anos sabe perfeitamente o que isto significa. O Brasil talvez tenha sido a democracia que mais puniu ativistas, jornalistas, blogueiros, parlamentares e cidadãos sob o argumento da “desinformação”. Basicamente, todos aliados ao ex-presidente Bolsonaro. No texto de Sulzberger, por pitoresco que seja, é Bolsonaro que surge como o grande malvado. Ele fala do “manual” típico dos ditadores para minar a liberdade de expressão. Coisas como “manipular a autoridade legal e regulatória para punir jornalistas e organizações de notícias”. E usar “tribunais para impor penalidades financeiras ao jornalismo que não lhe é favorável”. Sensacional. Fiquei pensando no que poderia estar incluído aí. Desmonetizar veículos digitais? Criar um inquérito infinito, a partir de uma interpretação do regimento interno de um tribunal? Atropelar a imunidade parlamentar, banindo deputados e senadores da internet? Praticar atos evidentes de censura prévia, como proibir um grande jornal de entrevistar o Filipe Martins, um tipo que sequer possui alguma acusação formal?

Sulzberger poderia encher algumas páginas com exemplos desse tipo. Mas não acho que esteja muito interessado nisso. Ele parece já saber que são esses líderes da “extrema direita” os culpados por todas essas coisas. Um tipo de jornalismo que de certo modo virou padrão: em vez de perguntar o que os fatos têm a ensinar, já aparece com a história pronta na cabeça. Há um problema orwelliano aí. O estranho fenômeno da criação de uma linguagem capaz de expressar o sentido (quase) inverso da realidade. A lógica do “ministério da verdade que fabrica a mentira; do ministério da paz que faz a guerra; e do ministério do amor encarregado da tortura”, na genial distopia 1984. Bolsonaro de fato utilizou a Lei de Segurança Nacional, no início de seu governo. Houve o caso do sociólogo investigado por chamar o presidente de “pequi roído”; Guilherme Boulos prestando depoimento por um tuíte comparando o destino de Bolsonaro ao da “dinastia de Luís XIV”. Isso entre outros episódios algo patéticos. O problema é que depois disso houve um tsunâmi de censura, banimentos e prisões praticados pelo Estado brasileiro. Em seu primeiro ano e quatro meses de gestão, o atual governo mandou abrir três vezes mais processos e pedidos de investigação, na Polícia Federal, contra jornalistas, cidadãos e parlamentares do que o governo anterior: 159 pedidos em dezesseis meses, contra 44 em 48 meses. A maioria por supostos “crimes contra a honra” de dirigentes do governo, ou “desinformação”. Um dos alvos foi o jornalista Alexandre Garcia. Outro foi o deputado Nikolas Ferreira, por dizer que o presidente é um “ladrão”. Curiosidade em saber o que nosso bom Sulzberger, com o Bill of Rights pendurado na parede, acharia desses novos “autocratas da extrema direita” usando e abusando da máquina do Estado para acossar críticos do governo ou jornalistas que faltam com a “verdade”.

Sulzberger teria como saber dessas coisas. Apenas não dá bola. Perfeito viés de confirmação. Em vez de buscar fontes diversas e usar de algum bom senso, o sujeito vai lá, acredita fielmente em uma fonte claramente enviesada e joga no papel o que lhe dá na telha. O resultado é um tipo de conhecimento que Mill chamava de “formulário”. Conhecimento surdo para a contradição, que jamais deveria pautar o bom jornalismo. A crítica ao governo anterior, justa em muitos sentidos, jamais deveria servir para empurrar para debaixo do tapete o “festival de abusos antidemocráticos”, na expressão que li em um grande jornal. Coisas como investigar cidadãos que tuítam alguma coisa; capturar fundos da Starlink, empresa inteiramente distinta do X; banir parlamentares das redes, em casos explícitos e ilegais de censura prévia. E que, além de tudo, ferem a imunidade parlamentar. “Imunidade no papel”, como me disse um advogado. Sendo o “papel”, no caso, a Constituição brasileira.

“A liberdade não é valor que deva pagar pedágio a simpatias de um lado ou outro”

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Esta semana um grupo de acadêmicos, liderados por Luciano de Castro, professor na Universidade de Iowa, divulgou uma carta pedindo o fim da censura no Brasil. Gentilmente, eles nos lembram de que há leis no Brasil. Que apenas conteúdos “claramente identificados” podem ser retirados da internet, sob o devido processo legal, como manda nosso Marco Civil da Internet. E que não se faz uma democracia delegando a uma autoridade o poder de “decidir o que os cidadãos podem ou não escutar”, sem uma clara previsão legal.

Por vezes, penso que voltamos aos anos 50. Sartre vs. Camus. Sartre dizendo que era preciso fincar pé ao lado do “socialismo”. Que não havia restrições à liberdade na URSS. E que dizer o contrário era fazer o jogo do inimigo, da guerra do bem contra o mal. Do outro lado, Camus, quase solitário, dizendo que não. Que era preciso fincar pé em certos princípios. E que não fazia sentido “decidir sobre a verdade de uma ideia conforme seja ela de esquerda ou direita”. No fim do dia, é isso. A liberdade não é um valor que deva pagar pedágio à simpatia por este ou aquele lado do mundo político. E é um enorme erro relativizar direitos, imaginando que com isso faremos bem à democracia. Camus esteve certo, nos anos 1950. E aqueles seus princípios, minoritários que fossem, continuam dizendo muito sobre o que vale a pena defender nos dias que correm.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912

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