
“É um golpista”, diz, em síntese, a acusação contra o jurista Ives Gandra Martins. Na bizarrice em que se transformou o país, até isto é possível. Seu crime: uma interpretação da Constituição. Há coisa de trinta anos, Gandra, hoje com 90, acha que a Constituição dá às Forças Armadas um papel moderador em momentos de crise. Discordo dessa visão, o que é irrelevante aqui. Qualquer um pode interpretar as leis ou o texto bíblico do jeito que quiser. O que se deve é cumprir as leis. Concordar é outra história. Diria que boa parte do edifício republicano se encontra nesta distinção. Você assina o contrato político, defende sua visão, ganha ou perde e respeita a lei. O que não envolve nenhuma operação no seu cérebro, ajustando as suas ideias. Alguém pode votar, porque o voto é obrigatório, mas argumentar que aquilo é um absurdo. Que deveria ser opcional. E pode viver bem em uma república defendendo que deveríamos voltar à monarquia. E por aí vai. É duro ter que escrever coisas perfeitamente óbvias em qualquer democracia. Mas é o Brasil de hoje.
O caso de Gandra Martins é apenas uma pequena ponta do iceberg. Os casos mais complicados são “sistêmicos”. Dizem respeito a garantias e princípios tradicionais de nossa democracia. Cito dois deles, devidamente dinamitados nestes tempos tristes. Um deles é a imunidade parlamentar. Um deputado, Nikolas Ferreira, foi multado em 200 000 reais por usar peruca amarela na tribuna da Câmara. Outro, Marcel van Hattem, foi acionado por fazer uma denúncia contra um agente público, por abuso de autoridade. É evidente que os dois desagradaram a muita gente. E aqui vai a grande novidade: é exatamente para isso que existe a imunidade. Para que um parlamentar possa desagradar, errar nas palavras, no tom ou na sátira. E depois ser julgado pelos eleitores. Outro princípio que estamos jogando pela janela diz algo muito simples: não cabe ao Poder Executivo funcionar como censor. Não importam as intenções. O roteiro é conhecido: começa com a urgência de proteger crianças e mulheres. Mas logo surge o rabicho: salvar a democracia, tirar do ar um documentário, punir o jornalista ou deputado que chamou o presidente disso ou daquilo. O Executivo é um poder político, expressa a visão de uma parte da sociedade. Perfeitamente legítimo para governar. Nunca para arbitrar sobre liberdades e direitos individuais. Foi por isso que o Congresso pôs no Marco Civil da Internet a exigência de decisão judicial para responsabilizar redes sociais por este ou aquele conteúdo. Nesta última semana, vimos a AGU ir ao STF demandar exatamente o fim deste princípio. Isso às vésperas de um ano eleitoral. Seria inaceitável a um simpatizante de Lula que um governo de “direita” fizesse isso; assim como é inaceitável a um simpatizante da direita que um governo Lula faça a mesma coisa. A sociedade é diversa, e isto é bom. Mas é preciso um pouco de inteligência para manter este edifício complicado de pé.
Minha tese sobre tudo isso: de um país esperançoso com a liberdade, que dez anos atrás definia o fim da censura em biografias, nos tornamos um país ranzinza. País de um autoritarismo difuso, não apenas no plano do Estado, do STF, da elite política. Mas na base da sociedade. Em um dia, vemos um grupo de advogados governistas querendo processar a deputada Bia Kicis por um discurso crítico ao STF; em outro, um grupo de estudantes de “direita” expulsos a socos e pontapés do campus de sua própria universidade, a UFF. A universidade é de todos, paga por contribuintes de todas as cores políticas. Mas o espaço institucional é capturado. Obedece à monocultura ideológica. Ela é a tradução tão brasileira do “você sabe com quem está falando?”, descrita pelo mestre Roberto DaMatta.
“Não cabe ao Poder Executivo funcionar como censor”
O topo do ranking da esquisitice nacional veio do Sul. A condenação da jornalista Rosane de Oliveira a multa de 600 000 reais por divulgar os valores recebidos por um grupo de juízes no Rio Grande do Sul. Rosane é uma jornalista com mais de quarenta anos de profissão, divulgou dados corretos e que constavam nas páginas oficiais do Judiciário. A acusação é de que ela teria falado a verdade, mas de um jeito “sarcástico”. Então estamos combinados: o Estado irá agora regular o tom usado pelo jornalismo. Imagino mesmo uma nova carreira: “analistas de tom”. O jornalista faz a reportagem e manda para a central de regulação. Quem sabe uma máquina de IA cheque se está o.k., se não tem sarcasmo, se não tem politicamente incorreto, se ninguém importante é ofendido. Ou se a coisa toda não está “descontextualizada”. Parece brincadeira. Não é. É o Brasil de hoje. Tudo com nossa proverbial seletividade. Na campanha eleitoral, matérias com informações reais foram censuradas pelo Estado, pois geravam “desordem informacional”. Um filme foi censurado por uma ministra, que um dia disse “cala boca já morreu”, sem nem mesmo conhecer seu conteúdo. E ainda agora o governo mandou censurar um documentário sobre Maria da Penha por “distorcer” fatos, segundo a visão do próprio governo. Então sejamos claros: não se trata de um fato isolado. Nós nos tornamos um país algo doentio. É constrangedor, aos 37 anos da Constituição de 1988.
Há quem diga que tudo isso não passa de um amontoado de mesquinharias. Ou, como escutei de uma figura do poder em Brasília, tudo não passa de acidentes de percurso em uma democracia. Discordo. Há uma lógica elementar. Se aqueles estudantes de “direita” não podem se manifestar em uma universidade pública, porque levarão pancadas, então o recado está dado: quem pensar diferente que fique bem calado; se um jurista não pode dar a sua visão sobre a Constituição, pois pode levar um processo, o recado está dado: você, que não tem 90 anos e nem é consagrado, não se meta a besta de pensar com a própria cabeça; se um parlamentar não pode fazer uma crítica ou denúncia que acha que deva fazer no Congresso, está dado o recado: “deputados, tomem cuidado, escolham as palavras”, pois a imunidade não é para “quaisquer palavras”, como está dito na Constituição. E, finalmente, se uma jornalista foi multada por divulgar uma informação pública, e inconveniente para o poder, e é multada em 600 000 reais, o recado está mais do que dado: o melhor é andar na linha, sob pena de acabar sem conta bancária, com passaporte retido ou coisa pior, como tantos por aí.
O resultado disso tudo é claro: nós nos tornamos o país do medo. Não sei se esse era o plano de muita gente. Mas funcionou. Uma boa democracia depende em muitos sentidos do que os gregos chamavam de parrésia: a disposição de falar com franqueza, de peito aberto, mesmo que isso desagrade. Isso no jornalismo, nas universidades, no Parlamento e na arena digital. Alguma chance de mudarmos de rumo? Não sei. A tolerância é um tipo de cultura que se constrói ao longo de muito tempo, mas que pode se perder muito rapidamente. É esse, no fundo, o dilema brasileiro. Não penso que aqueles que detêm o poder, que sentiram o seu gosto, terão alguma disposição para a renúncia. De modo que estamos com um problema, diria, bastante difícil de resolver.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2025, edição nº 2946