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Muskfobia

Fazia tempo que o planeta não contava com um bad boy global

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 31 ago 2024, 08h00

“Pratica atos satânicos”, diz Nicolás Maduro sobre Elon Musk, que entre outras coisas teria “hackeado o sistema eleitoral venezuelano”. O.k., não dá para levar o Maduro a sério. É apenas um exemplo pitoresco do haterismo global em torno de Musk. De um jornalista, leio que o dono do X, o antigo Twitter, “é o grande perigo para a democracia no planeta”. Assim, no seco. A razão principal seria que ele espalha “inverdades”, em sua conta, na rede. Além de ser dono da própria rede. Não entendi bem o que teria uma coisa a ver com a outra. Em algum momento, o sujeito diz que o problema seria manter uma “plataforma não mediada”. O risco à democracia viria do próprio excesso de liberdade. Sinal dos tempos. A lógica foi repetida por Edward Luce, do Financial Times. “As democracias não podem mais ignorar”, diz Luce, a “ameaça” de Musk. Suas reclamações incluem um vídeo satírico de Kamala Harris usando IA e muitos amigos de “direita”. E essa maldita Primeira Emenda, que permite que “quase tudo seja dito”. O que mais achei engraçado foi ler que Musk era um “menino mimado”. O sujeito que apanhava de cinta do pai, um completo maluco, e saiu de casa para se tornar a quase perfeita expressão do self-made man da nossa época. Sujeito que inventou o “foguete que dá marcha a ré” e anda prestes a revolucionar áreas tão distantes como robôs humanoides, neurotransmissores e inteligência artificial. E não parece dar muita bola para a incrível quantidade de raiva e despeito que recolhe todo santo dia.

O fato é que fazia tempo que o planeta não contava com um bad boy global. Na minha época, lembro que Francis Fukuyama cumpriu um pouco esse papel, com sua tese sobre o “fim da história”. Mas era só no meio intelectual. No caso de Musk, seu primeiro pecado é justamente ser um bilionário. Acho certa graça nisso. Por vezes me dá a impressão de que alguém acha que o sujeito já nasceu no topo da lista da Forbes. O bebê bilionário. As pessoas parecem esquecer um pequeno detalhe. A maior parte da fortuna de Musk vem da Tesla. E isso acontece pelo fato simples de que perto de 1,6 milhão de pessoas, a cada ano, acham que comprar um daqueles carros faz sua vida ficar melhor. É o mesmo motivo que faz do Jeff Bezos o segundo da lista. Porque ele vende livros mais baratos e entrega mais rápido do que os Correios. A liçãozinha simples, que as pessoas deveriam aprender no colégio, é que alguém só fica bilionário, em uma economia de mercado, seguindo as regras do jogo, se melhorar a vida de um monte de gente. Melhorar, bem entendido, não do meu ou do seu ponto de vista, mas do ponto de vista das próprias pessoas. Não acho que essas coisas sejam muito difíceis de entender, mas posso estar sendo otimista. Dias atrás escutei a Anitta, em um dia de socióloga, sugerir que “ninguém deveria ter mais de 1 bilhão”. Fiquei me perguntando o que o sujeito deveria fazer se as ações de sua empresa atingissem esse valor. Vender e colocar o dinheiro no banco não iria adiantar. Ele continuaria tão rico quanto antes, talvez apenas mais preguiçoso. Vender e jogar do alto de um helicóptero no Centro de São Paulo? O.k. O sujeito perderia o controle da própria empresa e ficaria sem o dinheiro. Por que então ele continuaria empreendendo? Por esporte? Se um dia tiver chance, pergunto a Anitta.

“Fazia tempo que o planeta não contava com um bad boy global”

A segunda razão da muskfobia vem da política. Musk simpatiza com o mundo libertário. Gosta de tipos “errados”, como Jordan Peterson, e tem verdadeiro horror à ideologia woke. Musk acha que foi a doutrinação woke, na escola, que o fez perder o filho. O guri que virou marxista, mudou de sexo e renegou o próprio pai. Não é pouca coisa, ainda que nada garanta que ele tenha razão sobre isso. Musk é um meritocrata. Quando assumiu o Twitter, reuniu os funcionários e deixou claro que políticas de diversidade “não eram prioridade”. O foco era a engenharia e a excelência. Musk tem certo horror ao coitadismo, à cultura da fragilidade, o que não deixa de ser um elogio de sua própria história de vida. Há um abismo aí. A paixão pelo risco, de um lado, e a proteção contra o dano, de outro. Há quem goste de viver em um mundo programado e seguro, talvez como aquela bolha do Show de Truman. E há quem goste da vida na selva. Abrir empresas em série, arriscar tudo no lançamento daquele foguete, depois de três explosões. E toda a história que conhecemos.

Por fim, há o pecado dos pecados: Musk gosta da liberdade de expressão. O que isso significa, na prática, não é muito difícil de entender. Mark Zuckerberg reconheceu que foi pressionado pelo governo e cedeu, censurando informações “indesejáveis” durante a pandemia e escondendo notícias sobre o caso Hunter Biden, o filho do presidente americano. Sendo claro: censurou uma informação que desagradava ao governo. Isso não é uma atitude compatível com uma grande democracia. Musk, ao menos em tese, não faria isso em sua rede social. É o que veremos. A questão em jogo é sempre a mesma: diante da superabundância de informação, o que devemos fazer? Rechear o mundo de regulações, em uma ladeira escorregadia possivelmente sem fim? Ou firmar posição com a cultura da Primeira Emenda? Na prática, delegando aos cidadãos, e não ao Estado, o juízo sobre o odioso, o inaceitável, o falso e o verdadeiro. Musk vai por aí. De onde ele tirou esse gosto, não sei. Talvez de sua infância, ainda durante o apartheid, na África do Sul. Quem sabe de suas leituras do Mochileiro das Galáxias. É difícil seguir o rastro da alma humana até as profundezas. E cada um pode fazer essa mesma pergunta para si mesmo.

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De minha parte, gosto da não conformidade. O velho J.S. Mill já havia identificado na Inglaterra da década de 1850, quando a Revolução Industrial já ia longe, os riscos da crescente massificação e padronização da cultura. “Agora todos leem as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, sentem esperanças e temores com os mesmos objetos.” Mill pressentia um mundo crescentemente hostil à ideia de individualidade. Quando observo a fúria padronizadora em nossa época, em especial do wokeísmo e sua tara pelo controle da linguagem, pela “limpeza” dos livros, da estatuária, do humor, da arte, penso que Mill tinha razão. E lembro de sua terapia: “É preciso garantir um lugar para os excêntricos”. Os tipos irritantes. Que erram e acertam, mas tomam o risco da dissidência. Os tipos que incomodam, nos grupos de Whats­App, que teimam em buscar alguma evidência na direção contrária do que pensa a maioria. E que por aí ajudam a fazer o mundo andar para frente. Além de ser um lugar um pouco menos xarope. É isso. Há um lugar para o dissidente em nossa cultura. Tipos como Musk, cujo talento parece ser o de dizer exatamente o que os outros não querem escutar. E cuja autoestima não depende em nada de nossa aprovação. Sua única demanda é a liberdade. E por aí, quem sabe, deixam esse rastro de incomodo e furor por onde passam.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908

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