Ele tem o tom de voz manso e, por ironia, se chama Bruno Paes Manso. Por anos, se dedicou a estudar o submundo do crime e lançou um livro que considero definitivo, República das Milícias — Dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro. Em virtude de um trabalho que estamos desenvolvendo, fiquei ao lado dele nos últimos meses estudando o cenário dos destroços da guerra contra as drogas. Não importava se Bruno estava conversando com policiais, milicianos ou traficantes, o tom dos entrevistados era sempre de muito respeito, como se estivessem falando com o doutor Drauzio Varella — das conversas brotava alguma esperança na mediação de conflitos. Com vasta bagagem de conhecimento, Bruno (um ex-repórter de VEJA, entre outros veículos) expõe a gênese das milícias no Rio de Janeiro, uma sopa cujos ingredientes são o estado policial, os destroços da ditadura e o jogo do bicho. O fogo que ferve essa sopa é o combate contra as drogas, que facilita a vida dos policiais corruptos ao lançar o orçamento público na difícil tarefa de enxugar gelo — em vez de regulamentar o uso, para diminuir o dano que a droga causa na sociedade.
Aqui onde eu moro, na Califórnia, a maconha é regulamentada, é vendida em lojas, com impostos regiamente pagos — uma delas, a MedMen, parece ser da Apple, embora ofereça maconha. Esse tema faz parte da minha trajetória profissional, desde quando fiz o filme Quebrando o Tabu, em 2011, para o qual cheguei inclusive a filmar um campo de papoula das Farc, as Forças Revolucionárias de esquerda da Colômbia, e escapei de um conflito armado por questão de horas.
A venda ilegal de drogas significa a disputa pelo ponto de venda, atalho para a morte de policiais honestos e terreno fértil para milícias e adjacentes. Um Estado que se lança numa missão impossível está condenado ao fracasso. A pergunta que vem na minha mente é a seguinte: por que desperdiçar tanto potencial humano? Não seria possível um programa de desmobilização de combate, com anistia inclusive, assim como a Colômbia fez com as Farc? Lembro que fiquei entusiasmado com a criação do Partido Novo. Pensei: finalmente o Brasil teria um partido de direita que merece, e dele nasceriam ideias razoáveis na questão das drogas, na lida com as milícias. Mas não. Logo desanimei ao ver a agremiação ser invadida por nomes ruins como o do ministro Ricardo Salles (que recentemente foi expulso) e saber que seu dirigente máximo declarara apoio a Bolsonaro nas eleições. O Partido Novo deu um passo importante expulsando um candidato que mentia no currículo, mas nunca evoluirá de fato enquanto restringir seu olhar ao estreito óculos de uma planilha de Excel. A direita do Brasil precisa ser endireitada: essa aliança de conveniência entre direita e milícia é grotesca (algo semelhante acontece nos Estados Unidos apesar do conceito de milícia em solo americano ser mais próximo de uma guerrilha de direita). Mas é fundamental também que a esquerda construa uma aliança com o mercado financeiro, os interesses não são necessariamente antagônicos. Enfim, para o Brasil ter um pouco de racionalidade, precisamos do melhor da direita e do melhor da esquerda — hoje ambas deixam a desejar.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711