Reescritora de Machado trata pobres como incapazes e se diz “horrorizada” com as elites? Esquerdismo é isso!
Se vocês nunca entenderam o pensamento esquerdista, aproveitem: basta ler as explicações dadas ao Estadão pela reescritora Patricia Engel Secco, aquela que, sob o pretexto de tornar os clássicos da literatura brasileira mais acessíveis aos novos leitores, mutila os textos originais em projeto financiado com dinheiro público.
Escrevi a respeito no artigo Machado de Assis vai dar beijinho no ombro também? e cerca de sete mil brasileiros já assinaram a petição online que pede que o Ministério da Cultura impeça a alteração de obras em língua portuguesa.
Não vou mutilar aqui as palavras de Patrícia. Prefiro desmascará-la(s):
“Fiquei tão ansiosa com o que está saindo que fui para a rua fazer entrevista. Falei com o gari, com o menino do lava-rápido, com o manobrista do restaurante. Ninguém sabe quem é Machado de Assis. É para eles que estou fazendo esse projeto. Vejo mães discutindo, mas não é para os filhos delas. É para a faxineira delas – não é nem para o filho da faxineira que está na escola; é para ela. Quero o livro na casa dos mais simples.”
Não há limites para a demagogia e o populismo esquerdistas. O velho discurso da luta de classes cai como uma luva para justificar o oportunismo de botar a mão em verbas públicas e ainda posar de defensora dos excluídos contra as elites supostamente malvadas e egoístas.
Se “ninguém sabe quem é Machado de Assis”, é evidente que não será Machado “Secco” – sequinho mesmo – de Assis que vai deixar as pessoas saberem. Apresentar um escritor com uma obra que não é a dele seria como eu apresentar a reescritora com declarações de Dilma Rousseff – embora, neste caso, a diferença talvez fosse menor entre o conteúdo dos discursos.
Quem quer oferecer literatura fácil senta a bunda na cadeira, escreve literatura fácil e procura uma editora. Quem quer “descomplicar” literatura “difícil” dá aulas, reedita obras com notas explicativas, educa. Mutilar a literatura supostamente difícil para facilitar sua digestão, usando dinheiro público, é coisa de aproveitadores cínicos, que tentam vender gato por lebre.
Mas o ápice do cinismo esquerdista vem agora:
“Estou horrorizada [com o abaixo-assinado]. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário.”
Quem é que acha que Machado de Assis não pode ser lido pelos pobres senão ela mesma, a mulher que julga necessário reescrevê-lo para eles? É a velha máxima atribuída a Lenin seguida à risca pela enésima vez contra uma elite imaginária: “Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz.” Patricia acusa os outros do seu próprio preconceito escancarado de esquerdista que trata os pobres como incapazes, infantilizando-os com o Estado Babá.
[Ver meu artigo O mundo inteiro está cheio de todo mundo.]
Segundo seus critérios, talvez nem o jovem Machado poderia ter lido uma obra à altura da sua própria, já que nasceu pobre, no Morro do Livramento, assim como Lima Barreto, que era filho de uma escrava liberta, além de inúmeros outros escritores e leitores “Josés” e “Cristianos”, no Brasil e no resto do mundo, que não fizeram da pobreza um pretexto para a ignorância.
Se um faxineiro não sabe o significado da palavra boticário, ele precisa é de DESEJO DE CONHECIMENTO e uma boa dose de vergonha na cara para buscar por si mesmo no dicionário, no glossário ou na nota de rodapé, e não da substituição da palavra por outra – como direi? – menos cheirosa… Leitura não é para manter as pessoas limitadas ao vocabulário que já conhecem, mas, entre outras coisas, para expandi-lo.
Pior do que a falta de professores capazes de incutir-lhes desejo de conhecimento e educá-los, são falsos professores oferecendo-lhes mais um arremedo de educação, entre tantos.
Gustavo Corção (1896-1978), cuja obra felizmente ainda não foi mutilada pelo MinC, escreveu sobre Machado de Assis:
“Não se pode contar um conto de Machado, ou narrar um capítulo de romance com outras palavras. O conteúdo está vitalmente colado à forma. O jogo de ideias está preso ao jogo dos elementos da linguagem. E é por isso que a obra de Machado é praticamente intraduzível em outro idioma, pois seria preciso aparecer no estrangeiro um escritor estilista de alto quilate, que pertencesse à família espiritual de Machado e que tivesse um profundo conhecimento da língua portuguesa.”
No Brasil, só quem aparece para mexer na obra de Machado é gente da família espiritual de Karl Marx. No centenário da morte do escritor, Diogo Mainardi fez uma coluna a respeito:
“Desde que Helen Caldwell, em 1960, negou o adultério de Capitu, moldando Dom Casmurro às suas teorias feministas, Machado de Assis foi raptado pela crítica esquerdista. Em particular, por John Gledson e Roberto Schwarz, que o transformaram ridiculamente num agente da luta de classes, empenhado em denunciar os abusos da classe dominante. Na realidade, Machado de Assis é mais complicado do que isso. Ele é um satirista conformista e resignado, que zomba da mesquinhez de nossa sociedade e acredita que, quando ela muda, muda sempre para pior. A série Capitu festeja o abastardamento da obra machadiana. Machado de Assis sabe bem: de agora em diante, isso só pode piorar.”
Pois é. Piorou. Em vez de destruí-lo por fora, Patricia Secco agora o esvazia por dentro. O esquerdismo é assim: sempre evolui para pior.
Felipe Moura Brasil – https://www.veja.com/felipemourabrasil
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