‘Os Banshees de Inisherin’: lições atuais do aspirante irlandês ao Oscar
Trama do filme espelha na tela, com inteligência, a polarização e as dores do mundo de hoje
As opções de entretenimento na ilha de Inisherin, na Costa Oeste da Irlanda, são escassas — especialmente no ano de 1923. Como boa parte dos homens dali, Pádraic e Colm (Colin Farrell e Brendan Gleeson, respectivamente) cultivam o hábito de passar suas tardes até o anoitecer no pub local bebendo cerveja e falando amenidades. Pádraic se surpreende quando a rotina diária é quebrada por Colm: o amigo não quer mais gastar seu tempo jogando conversa fora. O termo “amigos”, aliás, já não lhes cabe mais: Colm é categórico ao decidir, de forma unilateral, que a amizade acabou e é irreconciliável.
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Pádraic não entende nada. Teria dito algo inconveniente que magoou o colega? Será que os dois brigaram durante uma bebedeira e, por isso, ele não se lembra? O fim da relação e as DRs sobre ela são o ponto de partida da afiada comédia dramática Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin; Irlanda/Reino Unido; 2022), já em cartaz nos cinemas. O desenrolar do conflito, vez por outra, é pontuado pela explosão de bombas ao longe: do outro lado do mar, a alguns quilômetros de distância, a Guerra Civil irlandesa atravessa meses sangrentos.
Filho de irlandeses, o diretor e roteirista inglês Martin McDonagh, 52 anos — do provocativo Três Anúncios para um Crime (2017) —, usa a ruptura da amizade, uma trama simples e cômica que aos poucos ganha contornos violentos, como paralelo para o conflito histórico — uma guerra causada por extremistas e que ainda paira como névoa tóxica sobre o país. Serve também como alfinetada inteligentíssima à animosidade advinda da polarização política — um alerta que extrapola as fronteiras de Inisherin (ilha fictícia, por sinal), alcançando nações longínquas, entre elas o Brasil.
Com a mensagem política sutil ao fundo, o filme mergulha seus personagens em um poço de dilemas existenciais. Colm diz que o ex-amigo é chato e ignorante. Logo, ficar a seu lado seria um desperdício do tempo que lhe resta — especialmente agora que a maturidade lhe bateu à porta. Pádraic, então, passa a questionar não só a própria inteligência e suas habilidades sociais básicas como põe em xeque o valor das qualidades que ele esbanja, sendo a principal delas a gentileza. Como uma gangorra, o roteiro ora leva o público a concordar com um, ora com o outro.
Enquanto Colm conquista o tempo livre desejado para compor e ensinar estudantes de música, Pádraic se afunda em uma melancolia atroz — em uma interpretação primorosa de Farrell, que lhe garantiu sua primeira e merecida indicação ao Oscar. Das nove nomeações do filme, quatro estão nas mãos dos atores. Além de Farrell, concorrem à estatueta Gleeson, Barry Keoghan e Kerry Condon (veja o quadro).
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Cria do teatro britânico, Kerry ganhou de presente do diretor o papel da doce Siobhán, irmã de Pádraic, e a única pessoa com um mínimo de senso em meio à hostilidade masculina. A repentina solidão do personagem de Farrell é aplacada por ela e por Dominic, o esquisitão da ilha que todos repelem, vivido com delicadeza por Keoghan. Pádraic também conta com a companhia da adorável Jenny, sua minijumenta de estimação — que rouba a cena. O grupo enxuto se esquiva de uma presença sinistra: uma idosa que anuncia presságios fúnebres (vivida por Sheila Flitton, veterana dos palcos, de 90 anos). A anciã dá liga ao título do filme: banshees, no folclore irlandês, são entidades místicas femininas que acompanham a morte. O nome também é dado por lá às mulheres que choram em enterros — as carpideiras, em bom português.
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A forte presença de estrelas do teatro é marca de McDonagh, um dramaturgo aclamado. Os Banshees de Inisherin é apenas seu quarto longa — o primeiro foi Na Mira do Chefe (2008), também com Farrell e Gleeson. Ex-funcionário público, McDonagh deixou o emprego estável para escrever peças. Em 1997, alcançou um recorde de ninguém menos do que Shakespeare: aos 27 anos, se tornou o autor mais jovem desde o bardo a ter quatro peças simultâneas em cartaz em Londres. Hoje perto dos 60, ele se vê mais em Colm que em Pádraic: vai deixar o teatro e tudo que não vale seu tempo para se dedicar ao cinema, um produto mais rápido e de maior alcance. Sobre a polarização política, ele não parece otimista. Como sugere o diálogo final do filme, os humanos são afeitos a inimizades — uma maldição que afeta até os mais íntimos.
Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827
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