O Sequestro do Papa resgata caso real de intolerância que abalou a Igreja
Diretor italiano Marco Bellocchio retrata de forma magistral a história da criança judia confiscada dos pais pela Igreja Católica
Na noite de 23 de junho de 1858, o comerciante judeu Momolo Mortara (Fausto Russo Alesi) voltava para casa, em Bolonha, quando foi surpreendido pela polícia papal em sua porta. Assustado, ele correu até seu apartamento, onde se deparou com a esposa, Marianna (Barbara Ronchi), sendo pressionada a listar todos que ali residiam. Com o nome dos oito filhos do casal em mãos, o líder dos carabinieri envolvidos na ação pediu que levassem as crianças até ele. Em seguida, proferiu uma frase que assombraria para sempre a família. “Senhor Mortara, sinto muito informar que o senhor foi vítima de uma traição. Seu filho, Edgardo, foi batizado, e tenho ordens para levá-lo comigo”, atestou o policial, para desespero dos pais do garoto de 6 anos de idade.
O Sequestro de Edgardo Mortara – David Kertzer
Descrita em livros como O Caso Mortara, de Daniele Scalise, e O Sequestro de Edgardo Mortara, de David Kertzer, a história do garoto judeu retirado da família pela Igreja Católica, então sob comando do papa Pio IX (Paolo Pierobon), ganha um retrato magistral em O Sequestro do Papa, longa do diretor italiano Marco Bellocchio que chega aos cinemas brasileiros na quinta-feira 18. “Fizemos questão de enraizar a narrativa em fatos históricos indiscutíveis, antes de permitir que nossa imaginação preenchesse os espaços vazios”, explicou o cineasta ao Festival de Cannes.
Os Papas: Os pontífices de São Pedro a João Paulo II – Richard P. Mcbrien
Traduzido para as telas por Bellocchio, o caso Mortara é um exemplo eloquente do poder da Igreja nos tempos do Santo Ofício e de seu antissemitismo na Itália do século XIX: criado sob tradições judaicas até os 6 anos, Edgardo (Enea Sala, na infância, e Leonardo Maltese, na vida adulta) fora secretamente batizado nos primeiros meses de vida por uma doméstica. Católica, ela julgou que o garoto morreria de uma enfermidade e, sem o batismo, acabaria no inferno. Anos depois, a informação chegou aos ouvidos do padre Feletti (Fabrizio Gifuni), inquisidor de Bolonha, que ordenou — com base na lei vigente que proibia crianças cristãs de serem criadas por famílias não cristãs — que o menino fosse retirado da família e criado pela Igreja. Ele não fora o único: naquela época, o batismo clandestino e o sequestro legalizado de crianças eram uma realidade que assustava famílias judias, levando muitos a exigir que empregadas católicas assinassem documentos garantindo que não batizaram suas crianças. A atitude era uma precaução desesperada para evitar que os filhos fossem tomados pela Igreja, já que “havia uma crença difundida na Itália de que judeus preferiam assassinar seus filhos a vê-los crescerem católicos”, explica Kertzer no seu livro sobre o tema.
A Verdadeira História da Inquisição – Rino Camilleri
Embora Mortara não tenha sido o primeiro a ser subtraído da família em nome de Deus, sua história ganhou visibilidade inédita em razão da luta dos seus pais: determinados a conseguir o filho de volta, os Mortaras apelaram a todas as instâncias possíveis, inclusive ao próprio papa. O caso também foi altamente noticiado na imprensa internacional, que condenou as ações da Igreja. Diante da repercussão, Pio IX tomou a guarda do menino como uma questão de honra e afirmou que devolvê-lo contrariava princípios cristãos. O poder da Igreja, no entanto, se deteriorou: o episódio insuflou os nacionalistas que buscavam a unificação da Itália, e o movimento tomou diversas áreas dos Estados Papais entre 1859 e 1860. No ano seguinte, Vittorio Emanuele II foi proclamado rei da Itália, e o inquisidor Feletti foi julgado em Bolonha pelo caso Mortara — mas acabou inocentado por ter agido de acordo com a absurda legislação da época.
Intolerância Religiosa – Sidnei Nogueira
Já o garoto Edgardo seguiu preso à Igreja. E, curiosamente, por vontade própria: convertido ao catolicismo, o jovem — depois chamado de Pio Edgardo Mortara, em homenagem ao papa — optou, aos 19 anos, por não retornar à família e deixou a Itália após o fim dos Estados Papais, em 1870. Pouco depois, virou padre e se manteve na Igreja até a morte, aos 88 anos — tentando, inclusive, converter a mãe. Além do resgate louvável da história esquecida, o filme se sustenta na fotografia soberba, inspirada nas pinturas italianas do século XIX, e na atuação digna de gente grande do pequeno Enea Sala, que vive Edgardo na infância. “Ele não é batizado, nunca foi à igreja e também não é judeu. O que serve na tela é sua resposta emocional ao personagem”, disse Bellocchio. Uma história a ser lembrada como alerta sobre um perigoso pecado, a intolerância.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901