‘Não! Não Olhe!’: faroeste alienígena confirma força de Jordan Peele
O diretor vai além do terror racial para explorar novos meandros do filão — enquanto discorre sobre as delícias e as agruras da arte de fazer cinema
Um grupo inusitado, formado por dois irmãos fazendeiros, um vendedor de uma loja de eletrônicos e um cineasta excêntrico, conversa na cozinha de um rancho próximo a Los Angeles, na Califórnia. Eles acabam de traçar um plano audacioso para registrar a presença de uma nave alienígena que vem sobrevoando o local, sem que se saiba ao certo se ela veio para cá em missão de paz. Derrotar ETs é uma tarefa corriqueira no cinema hollywoodiano — especialmente para exaltar o poder armamentista dos Estados Unidos. Em Não! Não Olhe!, em cartaz nos cinemas, no entanto, os protagonistas não querem posar de papel de salvadores da pátria: o quarteto quer simplesmente filmar o tal óvni para mostrar ao mundo que ele existe. Assim, o grupo faturaria com a fama caso as imagens viralizassem. Se os alienígenas se revelarem hostis à humanidade, fica claro, não é problema deles.
O terceiro filme de Jordan Peele, dos explosivos Corra! (2017) e Nós (2019), oferece um painel das durezas do ofício de fazer cinema, mas é também um comentário irônico sobre a dependência obsessiva do mundo atual por estar conectado a aparelhos eletrônicos: todos eles deixam de funcionar quando a força alienígena se aproxima, dificultando o registro almejado pelo grupo. A situação vai ficando cada fez mais problemática. Sem celulares, o isolamento do rancho e a vulnerabilidade de seus moradores ganham outra dimensão: a possibilidade de sucumbir ao invasor, torna-se ainda mais assustadora quando o perigo não tem rosto e a falta da vítima nem mesmo será sentida.
Não! Não Olhe! mantém o currículo do diretor nova-iorquino irretocável, enquanto expande o alcance de seu domínio narrativo. Ao sair da zona de conforto do terror racial, subgênero que o fez conhecido, Peele abraça um amálgama peculiar que vai da ficção científica ao faroeste, culminando no tecno-horror — substrato da ficção no qual a paranoia com a tecnologia é parte fundamental do medo. A liberdade de experimentação é termômetro da segurança daqueles que já provaram do sucesso. Aclamado, Peele agora se dá o direito de ser mais que um ativista com uma câmera na mão: aos 43 anos, ele é um exímio cineasta, capaz de produzir entretenimento provocativo da melhor qualidade.
Em um passado não muito distante, porém, o diretor era um roteirista e comediante inexpressivo. Esse status mudou radicalmente com sua estreia na direção, Corra! (2017), que o consagrou como o primeiro (e ainda único) negro a ganhar o Oscar de roteiro original. O filme sobre a relação de um rapaz negro e uma moça branca sacudiu os padrões do terror psicológico ao adicionar racismo à sua fórmula. Em Nós, Peele elevou a régua da complexidade filosófica: uma família negra de férias é perseguida por seres sinistros de outra realidade.
Jordan Peele’s Get Out: Political Horror
Não! Não Olhe! aprofunda seu humanismo peculiar. O filme segue o tímido OJ (Daniel Kaluuya) e sua irmã falante, Emerald (Keke Palmer, ótima), herdeiros de um rancho outrora importante para Hollywood por seus cavalos treinados, imprescindíveis no auge dos faroestes. A evolução dos efeitos especiais diminuiu a demanda por bichos de verdade, e o negócio entrou em decadência. A aparição do óvni assusta e anima a dupla na mesma proporção: se registrarem uma prova de vida alienígena, eles podem ficar ricos e célebres. As cenas filmadas por Peele perpassam referências de filmes antigos, de Alfred Hitchcock a M. Night Shyamalan. A homenagem reverbera também feridas da indústria do cinema — como a presença ínfima de negros nela por tanto tempo. Emerald lembra que a primeira captura de imagens em movimento, em 1878, registrava um homem negro cavalgando. Até hoje, sabe-se só o nome da égua, não o de seu condutor.
A internet transborda teorias sobre os filmes de Peele, fazendo paralelos com momentos históricos, mitos e até a Bíblia. O mesmo já ocorre com os aliens de Não! Não Olhe!. As respostas, contudo, se revelam cada vez mais parte da experiência particular de cada espectador. Um bom cineasta não entrega tudo de mão beijada.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804
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