Karim Aïnouz: o cineasta que saiu do Ceará para conquistar o mundo
Em destaque no Festival de Cannes, o primeiro filme em língua inglesa do diretor retrata a rainha ofuscada pelo abusivo monarca Henrique VIII
No set do filme Firebrand, na Inglaterra, o diretor cearense Karim Aïnouz considerava a atriz sueca Alicia Vikander sua “aliada no crime”. “Em vários momentos a gente se olhava e eu falava: ‘Um inglês faria essa cena assim?’ ”, conta o cineasta de 57 anos, com um sorriso sagaz no rosto, sobre a parceria com a atriz, que tem um Oscar no currículo. A cumplicidade entre os dois estrangeiros tinha razões históricas. O longa que concorre à Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano (o resultado será conhecido no dia 27) — e que fez de Aïnouz o único brasileiro na disputa — é um drama de época ambientado na turbulenta corte inglesa da era Tudor, no século XVI. Abordado por uma produtora britânica, Aïnouz estranhou a possibilidade de dirigir o filme. Ao se aprofundar no tema, porém, uma motivação lhe serviu de combustível: “Um brasileiro ser convidado para fazer um filme sobre uma antiga potência colonial é fora do comum. Agarrei a oportunidade. Afinal, os ingleses e os americanos falam do resto do mundo como querem desde sempre”.
Se a veia da reparação histórica pulsava, foi um desejo com raízes mais sentimentais que se impôs na hora de dizer “sim” ao projeto. Abandonado pelo pai, um engenheiro argelino, e criado pela avó e pela mãe em Fortaleza, Aïnouz desenvolveu um olhar afiado para o feminino, assim como para os oprimidos que, embora desprovidos de poder, encontraram um meio de tomar as rédeas de suas vidas — viés notável em filmes de sua autoria, como Madame Satã, O Céu de Suely e A Vida Invisível. Obra que ganha agora um novo alcance global.
Catherine Parr
The Tudors in Love
Firebrand retrata um período da vida da rainha Catherine Parr (papel de Alicia), sexta e última esposa do rei inglês Henrique VIII, interpretado por Jude Law. O monarca, que governou de 1509 a 1547, não era, como se sabe, um partidão a cobiçar: ele enviou a primeira mulher para o exílio, mandou decapitar duas outras — sendo Ana Bolena a mais famosa —, e fez da palavra abusivo um termo insuficiente para explicar seu temperamento tóxico. Nesse lamaçal, Catherine foi relegada à fama da mulher que sobreviveu ao rei assassino — e cuidou dele no leito de morte. “Para mim, a Catherine tem o mesmo DNA de Madame Satã: são histórias reais de pessoas ofuscadas e que deviam ser contadas”, diz Aïnouz, relembrando seu primeiro filme, de 2002, com Lázaro Ramos na pele da transformista do título, figura emblemática da boemia carioca nos anos 1940. Se Madame Satã encarou um mundo que a repelia, a rainha Catherine respondeu à opressão marital olhando para o futuro: ela foi a responsável pela educação da filha do rei, Elizabeth I, que assumiu o trono e promoveu um longo período de prosperidade e de efervescência cultural.
A postura de Catherine fez o diretor se lembrar de uma velha frase de sua mãe, Iracema, que foi cientista. “Ela me dizia: ‘Não tenho dinheiro para deixar a você, mas vou deixar a educação’ ”. Quando fez 18 anos, ele ganhou da genitora uma passagem para a França para estudar. Lá, ele encontrou o pai desconhecido — uma relação frágil até hoje. O tempo em Paris foi traumático: a xenofobia contra as colônias recém-libertas fez do país um campo minado para os traços e o nome árabe de Aïnouz. “Entendi a raiva de ser tratado como um cidadão de segunda classe.” A frustração o levou a Nova York, onde morou por quinze anos e deu seus primeiros passos como assistente de cineastas, entre eles Todd Haynes — com quem disputa a Palma de Ouro neste ano. Vivendo há uma década em Berlim, Aïnouz transita por cenários variados — em junho, lança aqui o documentário O Marinheiro das Montanhas, uma investigação sobre sua família paterna na Argélia. É no Brasil, porém, que o diretor identifica sua essência. “Quis fazer cinema para celebrar o meu país.” O bom filho agora vive seu ritual de passagem.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842
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