Filme ‘Tudo em Todo o Lugar’ faz viagem filosófica pelo multiverso
No longa, uma mulher comum deve salvar o mundo — se conseguir, antes, resgatar a própria família
Poucos lugares no mundo seriam mais inadequados para se ambientar um filme de ação do que um prédio da Receita Federal. O mesmo pode ser dito de uma lavanderia capenga onde as máquinas vivem dando problema e as roupas esquecidas se acumulam em pilhas bagunçadas. Mas no filme Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, em cartaz nos cinemas, os dois cenários cotidianos e desagradáveis se transformam em epicentros de uma batalha que envolve uma modesta família de imigrantes chineses, uma entidade do mal superpoderosa e o destino de, quem diria, toda a humanidade. Na produção independente, dirigida pelos amigos Dan Kwan e Daniel Scheinert — duo de xarás apelidados de os “Daniels”, famosos no meio pela direção de clipes musicais —, tudo o que parece um disparate é rapidamente vertido em originalidade.
Uma simples ida a uma repartição pública compete ombro a ombro com a adrenalina de uma aventura de heróis da Marvel. A comparação não é exagerada. Assim como o explosivo Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, lançado neste ano, o filme viaja por universos paralelos. Os roteiros, porém, são incomparáveis, e a distância de orçamento entre os dois é abismal: Tudo em Todo o Lugar foi feito com modestos 25 milhões de dólares, ante 200 milhões do longa do super-herói — e nesse embate entre Davi e Golias, o gigante fica no chão.
Aqui, a heroína é a mais ordinária possível. Mãe nervosa, esposa ausente e dona irritadiça de uma lavanderia, Evelyn (a brilhante Michelle Yeoh) é o estereótipo da imigrante chinesa nos Estados Unidos, com semblante duro e carregada de responsabilidades. Seu marido, o doce Waymond (Ke Huy Quan), e sua filha, a melancólica Joy (Stephanie Hsu), não suportam mais a matriarca, e se afastam dela dia a dia. Quando o casal vai prestar contas à Receita, atendido por uma agente caricata (vivida pela ótima Jamie Lee Curtis), Evelyn é interceptada por uma versão bem mais interessante de seu marido, vindo de outro universo. Ele lhe apresenta a existência de outros mundos, criados a partir de escolhas distintas feitas por ela. Em um deles, Evelyn não se casou e se tornou uma mestra em artes marciais e estrela de cinema. Em outro, virou uma chef de cozinha habilidosa. As variações são infinitas. Mas o novo mundo que se abre para ela cobra uma fatura amarga: uma entidade maligna vem destruindo universos e Evelyn tem as qualidades necessárias para lutar contra ela. Ou melhor, a falta de qualidades: sendo a mais fracassada de todas as suas versões, a mulher é uma página em branco pronta para acessar as habilidades variadas de si mesma de realidades paralelas.
Fazendo jus ao nome do filme, Tudo em Todo o Lugar não se prende a um gênero. Humor, drama e terror se misturam entre elaboradas cenas de lutas marciais enquanto a missão de salvar o mundo só ganha sentido quando Evelyn nota que, antes, precisa salvar a própria família da ruína. O significado do título comprido, porém, é muito mais profundo e um campo minado de spoilers.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é o tipo de filme que demanda uma digestão após o subir dos créditos. Nas redes, as análises e teorias sobre a produção mergulham nos desafios da maternidade, nas agruras de transtornos psicológicos, como o déficit de atenção, e nas exigências constantes do mundo moderno. Contudo, sua mensagem mais pungente é explícita: assim como ficar em dia com o imposto de renda ou lavar roupas, o aqui e agora oferece momentos bons e ruins — e cabe a cada um passar por eles da melhor maneira possível.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794
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