Como ‘Emilia Pérez’ foi de grande promessa a fiasco no Oscar
Com treze indicações, filme chega ao país em meio às polêmicas provocadas pelas falas tóxicas de sua estrela

A trama musical Emilia Pérez mal foi lançada e já se destaca na história do cinema por duas façanhas curiosamente interconectadas — e paradoxais. O primeiro feito do filme, que acaba de entrar em cartaz no país, diz respeito ao sucesso de seus produtores em criar um produto cirurgicamente atrativo para premiações como o Oscar. Emilia Pérez é uma empreitada multinacional que inclui duas estrelas de Hollywood, Zoe Saldaña e Selena Gomez, um diretor com aura provocativa, o francês Jacques Audiard, e — eis a cereja do bolo — uma trama de superação sobre um traficante mexicano que se redime enquanto vive uma transição de gênero, papel defendido em cena por uma genuína atriz trans, a espanhola Karla Sofía Gascón. Não deu outra. Embalado por uma campanha de marketing turbinada pelo poderio global da Netflix, o longa amealhou o maior número de indicações ao Oscar: vai concorrer a treze estatuetas na festa do dia 2 de março em Los Angeles. Mesmo que nada ganhe, faz história ao emplacar Karla como primeira mulher trans a concorrer ao prêmio de atriz, ao lado de feras como Demi Moore, de A Substância, e — claro — a brasileira Fernanda Torres, por Ainda Estou Aqui.
O paradoxo da situação, acompanhada globalmente por fãs e detratores do filme de forma apaixonada nos últimos dias, é que a mesma Karla produziu outro feito inesperado: raras vezes se testemunhou o derretimento tão acachapante de um favorito ao Oscar. A atriz passou de heroína da diversidade a vilã tão logo começou a circular um farto dossiê de publicações suas nas redes sociais entre 2017 e 2022, eivadas de opiniões racistas, xenofóbicas e até mesmo machistas, pondo em xeque a premissa virtuosa do filme. Em questão de horas, sua conquista histórica já havia sido eclipsada pela ameaça do cancelamento virtual. Karla se desculpou, mas não o suficiente. Após exigir a expulsão dos muçulmanos da Espanha e ironizar a morte de George Floyd, negro americano cujo assassinato pela polícia deflagrou o movimento Black Lives Matter, a atriz simplesmente disse acreditar que “a luz sempre triunfaria sobre a escuridão”. Na tentativa de limpar a imagem, foi ao ar na CNN espanhola para dizer que não poderia ser racista — pois, afinal, havia trabalhado com a negra Zoe Saldaña.
O caso de Emilia Pérez ilustra de modo didático uma questão de potencial incandescente. A cobrança por autenticidade na tela se tornou um vespeiro capaz de corroer filmes e reputações, e o peso pesado do Oscar 2025 é a mais nova vítima disso. Emilia Pérez sintetiza o caldo de reivindicações justas por representatividade, exageros, contradições e hipocrisia que tantas vezes cerca conceitos como “lugar de fala” e “apropriação cultural” — demandas que, curiosamente, não estavam na ordem do dia até meados da década passada (veja o quadro). Sua trama enfureceu os mexicanos: embora se passe naquele país e fale de seus dramas sociais, o filme exibe uma única atriz de lá e promove uma espetacularização do narcotráfico. Até o ativismo trans torce o nariz. Para o filósofo Paul B. Preciado, referência em estudos de gênero, a oposição entre antes e depois no filme reforça o preconceito de que a mulher trans é um “lobo em pele de cordeiro”.
Mas seria a vivência uma prerrogativa obrigatória para contar certas histórias? Karla discorda: compara a “limitação da arte” à intolerância que motivou o atentado contra o jornal Charlie Hebdo, na França, em 2015, e disse a VEJA que, se o diretor Jacques Audiard só pudesse fazer filmes sobre sua realidade, “seria uma história muito chata” (veja a entrevista). O próprio Audiard é sincerão a respeito. Segundo o diretor, a opção por contratar atrizes hollywoodianas sem ligação com o México foi prática: “Eu realmente precisava de dinheiro”. Questionado acerca de suas pesquisas sobre a cultura local, disse não ter se aprofundado por “saber o necessário”.
Nessa controvérsia, um detalhe interessa aos brasileiros: a derrocada de Emilia Pérez pode afetar as chances de Ainda Estou Aqui no Oscar? Na plataforma GoldDerby, que agrega previsões de especialistas, as chances do filme francês caíram em todas as categorias. Na de filme do ano, foi de segundo para sexto lugar. Na categoria de filme internacional, perde a cada dia seu favoritismo ante o longa de Walter Salles. Karla nem estava entre as favoritas para atriz, e agora foi até banida de eventos de campanha pela Netflix, que distribui o filme nos Estados Unidos. Na corda bamba do Oscar, nenhum pecado é pior do que uma fala fora de lugar.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930