As lições originais do filme ‘A Verdadeira Dor’ sobre o Holocausto
No longa, os netos de uma sobrevivente vão à Polônia em uma viagem emotiva — e surpreendentemente cômica

Na cidade de Lublin, na Polônia, o ator americano Jesse Eisenberg conheceu a casa onde sua família morou antes de deixar o país, em 1939: o clã judeu fugiu da invasão nazista que marcou o início da Segunda Guerra Mundial. Um detalhe chamou a atenção de Eisenberg. A residência ficava a exatos cinco minutos de distância de carro do campo de concentração de Majdanek. Os dados sobre quantos judeus foram assassinados ali divergem: os números vão de 80 000 a 360 000. “Fiquei impressionado que vários campos de extermínio eram muito perto de cidades onde pessoas comuns viviam”, disse o ator a VEJA (leia a entrevista abaixo).
Da experiência pessoal nasceu o filme A Verdadeira Dor (A Real Pain, Estados Unidos/Polônia, 2024), em cartaz nos cinemas. Além de assinar o roteiro, que foi indicado ao Oscar, Eisenberg dirige e estrela a produção sobre dois primos que, após a morte da avó — uma sobrevivente do Holocausto —, viajam até a Polônia para se reconectar com suas raízes e atender ao último pedido da matriarca. Opostos, David (Eisenberg) e Benji (Kieran Culkin) lidam de modo distinto com a carga do trauma geracional. David é todo certinho e encara a vida com o peso de ser produtivo e de caráter irrepreensível, para honrar a memória e o sofrimento da avó. Já Benji é caótico e brincalhão, mas sofre de depressão e ansiedade por baixo das aparências — e acredita que, não importa o que ele faça, nunca estará à altura do passado de sua família.
Na Polônia, os dois vão se juntar a um peculiar grupo de turismo, com um guia especializado em história judaica e no Holocausto — aventura que vai transitar entre o dramático e o cômico sem trocar de marcha. A escolha do tom realça a ousadia notável de A Verdadeira Dor entre os variados exemplares do cinema sobre o genocídio dos judeus. De clássicos como A Lista de Schindler (1993) até o recente O Brutalista, nome forte do Oscar neste ano, a perseguição pelos nazistas no conflito costuma ensejar, com toda a razão, altas notas dramáticas nos roteiros que mergulham naquele período tenebroso. Nas mãos de Eisenberg e Culkin, contudo, o tema ganha cores filosóficas e atuais, ao analisar a herança daqueles que, nascidos no conforto e em tempos de paz, fazem um exame existencial diante do sacrifício e das lutas enfrentadas por seus antepassados.
Em determinado momento no trajeto da visita ao campo de concentração de Majdanek, o grupo de turistas viaja na primeira classe do trem, e Benji surta com a triste ironia: o mesmo caminho havia sido trilhado por seus familiares — porém, contra a vontade deles, presos em vagões abarrotados e insalubres, rumo ao que seria um destino letal para muitos. Em outro ponto, quando o primo age de forma desleixada e arrogante, David desabafa com os viajantes: “Como esse sujeito pode ser da linhagem de sobreviventes desse local?”. Questionamentos do tipo transbordam ao longo do roteiro, refletindo o que o próprio diretor sente, como neto de judeus que emigraram para os Estados Unidos.
Se Eisenberg é o coração do filme, Culkin é a respiração que lhe dá vida. Originalmente, o diretor planejava interpretar Benji, mas mudou de ideia. Ele contratou Kieran — que por muito tempo foi conhecido como “o irmão de Macaulay Culkin” — sem fazer teste e nem sequer vê-lo atuando, baseado apenas em seu instinto. Na época, Kieran brilhava na última temporada da série Succession, na pele do problemático Roman Roy. Nas filmagens na Polônia, o modo agitado de Eisenberg, que emenda falas com poucas pausas para respirar, parecia lento perto da agilidade do colega, que improvisava com frequência e raramente seguia as marcações do diretor.
Assim como os primos da ficção, os dois acabaram afinando o ritmo numa química expressiva. Embora esnobado na categoria de melhor filme no Oscar, A Verdadeira Dor tem uma estatueta praticamente garantida: Culkin é favorito ao prêmio de ator coadjuvante. Se levar, será merecido. Ao voltar ao passado, os protagonistas trouxeram uma lição valorosa para o presente: a vida é algo raro e precioso — e deve ser celebrada.
“O segredo é não fazer piada”
O diretor e ator Jesse Eisenberg, 41 anos, falou a VEJA sobre os bastidores do filme e sua conexão com a Polônia.

Como sua origem influenciou o filme? Minha família é polonesa. Eles deixaram o país em 1939. Há quase vinte anos, fiz uma ampla viagem pelo país, conheci a casa onde eles viveram. Escrevi o roteiro a partir dessa experiência.
Algo específico o marcou nessa viagem? Me impressionou que vários campos de extermínio eram muito perto de cidades onde pessoas comuns viviam durante a Segunda Guerra. Filmamos na casa da minha família, em Lublin, essa cidade linda, colorida, com várias lojas — e a cinco minutos dali fica o campo de Majdanek.
Apesar do fundo trágico, o filme consegue ter muito humor. Como encontrou esse equilíbrio? O segredo é não fazer piadas. O Holocausto não é piada. O humor vem da dinâmica entre os personagens e da ironia das situações pelas quais eles passam. Kieran também trouxe uma leveza para o filme.
Em que sentido? Eu imaginei o personagem dele mais sombrio e nervoso, mas o Kieran tem um charme juvenil adorável e ficou mais fácil para o público se apaixonar por esse cara. Ele faz e fala coisas erradas o tempo todo, mas o Kieran deu a ele uma doçura difícil de ignorar.
O momento mais sóbrio do filme foi rodado no campo de Majdanek. Como foi isso? O museu que administra o campo foi essencial. Eles me ajudaram com o roteiro e a lidarmos com dilemas como: era preciso iluminar os atores na câmara de gás. Era algo tão vulgar para pensar ali, mas graças a eles conseguimos filmar essa e outras cenas impactantes.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2025, edição nº 2929