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‘Infiltrado na Klan’: a história do policial negro que enganou os racistas

Saiba o que é verdade e o que é ficção no elogiado filme de Spike Lee

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 24 fev 2019, 20h48 - Publicado em 30 nov 2018, 14h56

Um negro com carteirinha de membro da Ku Klux Klan é algo tão absurdo que nem a ficção daria conta de inventar uma história do tipo. Por isso, a realidade da trama que inspirou o filme Infiltrado na Klan é tão curiosa. Nos anos 1970, Ron Stallworth, primeiro detetive negro da cidade de Colorado Springs, se infiltrou de maneira curiosa na milícia racista americana formada por pessoas brancas e responsável por diversas atrocidades contra negros, judeus, imigrantes e homossexuais.

Na época, o grupo em decadência reagia à conquista dos direitos civis dos negros e tentava se reorganizar como um movimento político e não violento – contudo, eram a favor de intimidação e de respostas violentas caso se sentissem desrespeitados.

Ao longo de nove meses, Stallworth manteve constantes conversas com a liderança da facção por telefone e cartas. Pessoalmente, outro policial, branco, claro, comparecia às reuniões. Em 2014, o detetive publicou um livro, editado no Brasil pela Seoman, em que narra todo o processo da investigação.

Para adaptar a trama, o cineasta Spike Lee usou com fidelidade pontos cruciais, enquanto aproveitou para soltar a imaginação na criação de personagens coadjuvantes e no desfecho do filme.

Confira abaixo o que é real e o que é ficção no longa:

 

Infiltrado no Panteras Negras

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(//Divulgação)

Ron Stallworth, interpretado no filme por John David Washington (filho de Denzel Washington), começou a carreira na polícia como cadete e depois passou pelo Departamento de Registros, onde conheceu membros da unidade de narcóticos. Ele almejava atuar como os colegas, que faziam investigações disfarçados. Ser negro o ajudou a conseguir sua primeira missão infiltrado, como mostra o filme. Stallworth foi designado para monitorar uma reunião dos Panteras Negras, partido do movimento negro, que contaria com a presença de Stockley Carmichael, militante considerado radical pelas autoridades. O departamento de polícia estava preocupado que o ativista incitasse algum ato de violência entre seus seguidores contra os brancos. Assim como mostra o filme, Stallworth explicou aos colegas que Carmichael parecia inofensivo.

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Processo de filiação na KKK

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(//Divulgação)

Existem algumas poucas diferenças entre filme e realidade sobre o processo de filiação de Stallworth na Ku Klux Klan. Como mostra o longa, o policial realmente respondeu a um anúncio em um jornal local feito pela milícia. A diferença é que, no filme, ele liga para o número do anúncio, enquanto na realidade ele mandou uma carta para uma caixa postal. Depois, ele recebeu um telefonema em uma linha não rastreável da polícia para dar continuidade ao processo. O conteúdo da ligação é descrito com fidelidade na produção. Nela, o policial solta vários impropérios racistas e afirma que a irmã está saindo com um homem negro, o que o deixa maluco de ódio. A mentira foi bem aceita pelo recrutador, que logo marcou um encontro pessoalmente.


Nome real, sério?

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(//Divulgação)
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Sim, Ron Stallworth cometeu o ato falho de usar o nome verdadeiro na hora de pedir sua inscrição na Ku Klux Klan. Segundo o detetive, o erro, que ele chama de “pecado mortal”, se deu porque, quando mandou a carta, não imaginava que aquele contato se desdobraria em uma investigação tão complexa. A expectativa inicial era apenas receber como resposta panfletos e jornais voltados para os ideais do grupo, não uma ligação com proposta para um encontro. No filme, Ron comete o mesmo erro ao dar o nome verdadeiro, porém, por telefone, ato tratado ali como inexperiência, já que ele era novo no cargo de detetive.


Colega branco e judeu

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(//Divulgação)

Quando entrou na investigação, meio sem esperar que ela acontecesse, Ron Stallworth precisou elaborar um plano de emergência. Ele correu ao sargento e pediu a ajuda de um policial do setor de narcóticos, chamado no livro por Chuck – nome alterado para proteger a identidade do profissional. No filme, Chuck vira Flip Zimmerman, papel do ator Adam Driver. Da realidade, Spike Lee manteve a aparência cabeluda com barba meio hippie, que Stallworth destaca no livro. O policial, contudo, não cita em nenhum momento que o parceiro na investigação seja judeu – outro alvo do ódio da Klan. A absurda e engraçada cena em que ele é interrogado para que o grupo tenha certeza de que não é judeu foi inventada pelos roteiristas. O longa também limou da história um segundo detetive disfarçado, que entrou no meio da investigação como um reforço para Chuck em campo.


Namorada ativista

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(//Divulgação)
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A estudante que o policial conhece na reunião do Black Power, Patrice Dumas (Laura Harrier), que se torna sua namorada ao longo do filme, é fictícia. Spike Lee decidiu criar a personagem para fazer um link com as mulheres ativistas da época e para reforçar a relação complicada entre negros e policiais – ao longo da trama, o detetive disfarçado tenta defender os agentes da lei, enquanto a jovem continua a chamá-los de porcos. Na realidade, quando fez sua primeira missão, Stallworth conheceu uma mulher branca alemã que tentou flertar com ele no evento dos Panteras Negras. O policial conta no livro que o bar estava repleto não só de negros, mas também dos “wiggers”, nome que mistura “white niggers”, algo como “brancoulos” – brancos com crioulos na tradução livre —, caso da moça em questão. Stallworth, aliás, estava na época no começo do namoro com a mulher que se tornaria sua esposa cinco anos depois.


Encontro com David Duke

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(//Divulgação)

Um dos pontos mais intrigantes do filme aconteceu na vida real. O político e historiador David Duke, um dos líderes da KKK — que na época levava o título de Grande Mago — visitou Colorado Springs em 10 de janeiro de 1979. Stallworth sabia da visita, pois conversou diversas vezes com o chefão dos supremacistas brancos por telefone. Para a surpresa do detetive, ele foi designado para a segurança de Duke durante a viagem, o que poderia colocar toda a investigação em risco caso sua voz fosse reconhecida por ele.

Stallworth encontrou Duke em um restaurante, onde ele estava com colegas da Klan. “Eu me apresentei a David Duke, disse que eu era o policial designado para fazer sua segurança por causa das ameaças que ele recebia. Reforcei que não acreditava em sua filosofia política e ideológica, mas que eu era profissional e que faria de tudo para mantê-lo em segurança”, conta o policial em entrevista ao site Vice. O detetive relembra que Duke foi gentil e chegou a apertar sua mão com a saudação da Klan, pensando que ele não a identificaria.

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Em um momento de ousadia, ele pediu uma foto ao lado do político, já que ninguém acreditaria que ele andou ao lado dele naquele dia. Duke aceitou, mas se sentiu incomodado quando o detetive tentou abraçá-lo para o registro – que sim, seria feito por Chuck, o outro policial disfarçado. Mesmo assim, ele enganou Duke e colocou os braços ao redor dos ombros dele na hora da foto. Quando o líder da Klan quis confiscar a câmera, recebeu uma ameaça do policial. “Se você me tocar vou te prender por agressão à força policial”, relembra ele. A foto, por ser uma polaroide, acabou se perdendo no tempo.

David Duke e Topher Grace
David Duke e Topher Grace seu intérprete no filme ‘Infiltrado na Klan’ (AP Photo/Universal Pictures/VEJA)

Identidade descoberta

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(//Divulgação)

Spike Lee deu a Ron Stallworth a satisfação do final que ele queria. “Minha grande frustração é que não pude revelar quem eu era para mostrar o quão idiota eles são”, disse à Vice. No filme, a identidade do policial é descoberta, mas em meio à confusão final ele só consegue dizer a verdade a David Duke por telefone. Na cena, ele ironiza uma fala da vida real de Duke, que afirmou ao policial que identificaria se falasse com um negro ao telefone pelo “jeito que os negros falam”, que ele considerava inferior aos modos de se portar de um branco.

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Na vida real, a investigação chegou ao fim quando os membros do grupo começaram a pressionar Chuck para assumir um posto de liderança – como é retratado no filme. Ele, contudo, não poderia aceitar, primeiro porque poderia aliar o próprio departamento policial a um grupo terrorista. O segundo motivo e mais relevante é que um policial infiltrado pode investigar e, por exemplo, prender alguém que comete um ato de violência, mas se este mesmo policial for parte da liderança do grupo, logo o ato violento teria sido uma ordem dele, o que faria perder o sentido uma de possível prisão.


Atentado e resultado da investigação

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(//Divulgação)

O atentado executado no filme contra Patrice não aconteceu. Os nove meses de investigação serviram para enfraquecer os bastidores do grupo, que, apesar de não estar no auge nos anos 1970, ainda foi o autor de cinco assassinatos em outro estado, na Carolina do Norte, na mesma época. Stallworth e sua equipe coletaram informações relevantes, como o nome dos membros do grupo, que passaram a ser monitorados, assim como ameaças de ataques (dois bares gays eram alvos), o armamento que eles possuíam e sua associação a outros grupos neonazistas de ação declaradamente violenta. Eles descobriram a presença de diversos militares americanos filiados à KKK, entre eles dois oficiais do Comando de Defesa Aeroespacial, com acesso a informações secretas do governo americano. Com a investigação, os dois foram redirecionados para a base dos EUA apelidada de “Pólo Norte”, instalação militar instalada em um local remoto no extremo norte do país. Assim, o processo iniciado por Stallworth chagou ao alto escalão do Pentágono.

Por fim, o que Stallworth diz ser o grande feito, a investigação desmantelou passeatas e queima de cruzes, símbolos históricos dos racistas para provocar terror em seus alvos. Quando questionado sobre do que mais ele se orgulha de toda a ação, o policial responde: “Como resultado de nossos esforços, nenhum pai ou mãe de uma criança negra ou de outra minoria teve que explicar por que uma cruz de cinco metros e meio de altura podia ser vista queimando em um local de grande visibilidade. Nenhuma criança daquela época precisou vivenciar o medo desse ato de terror.”

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