‘A Favorita’ é fiel à história real, mas infla romance lésbico incerto
Filme queridinho do Oscar 2019 mergulha na biografia da rainha Anne entre muitos acertos e algumas invencionices para efeito dramático
Depois de O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, o diretor grego Yorgos Lanthimos volta aos cinemas para provocar com seu romance sarcástico A Favorita. Indicado a dez prêmios no Oscar, incluindo o de melhor filme, o longa se inspira na história real da rainha britânica Anne (Olivia Colman, no filme), que governou Inglaterra, Escócia e Irlanda entre 1702 e 1707 e, depois, uniu os dois primeiros no Reino da Grã-Bretanha.
Sua atuação política, porém, fica em segundo plano no filme que prioriza sua relação com duas mulheres: a duquesa de Marlborough, Sarah Churchill (Rachel Weisz), e uma nova criada ambiciosa chamada Abigail Hill (Emma Stone).
Saiba o que é real e o que é ficção na obra de Lanthimos:
Um palácio de presente
Logo no início do filme, a rainha mostra à duquesa de Marlborough a maquete de um palácio gigantesco, que é um presente para ela. Na vida real, o palácio existiu, mas as circunstâncias foram um pouco diferentes.
O edifício em Woodstock, Oxfordshire, foi pensado como uma homenagem ao marido de Sarah, que tinha acabado de vencer uma batalha importante, e não como um presente para a duquesa. Anne havia sido pressionada pelo Parlamento a construir algo que perpetuasse a imagem do duque e valorizasse suas conquistas, porém, a corte não arcou com toda a construção e, sim, apenas apoiou financeiramente parte da obra. Como no filme, Sarah desaprovou o projeto, julgando-o “grande e desajeitado”.
O palácio acabou por ser um motivo de discórdia no reino, levando décadas para ser concluído e drenando muito mais recursos do que o previsto. Em 1712, quando a relação entre os Marlborough e a rainha chegou ao limite, a coroa retirou o apoio e o restante da obra acabou sendo bancada pelo duque. Anne morreu dois anos depois, em 1714, e nunca chegou a ver o palácio pronto.
Uma prima distante
No filme, Abigail aparece no palácio real suja e desarrumada, apresentando-se como prima distante de Sarah e implorando por emprego. As duas de fato eram parentes, mas, na realidade, foi Sarah quem se ofereceu para ajudar a família Hill ao saber de sua situação miserável. Ela doou dinheiro aos pais e procurou emprego para todos os filhos. Abigail era a mais velha e foi trabalhar na casa de Sarah a princípio. Quando uma das criadas de Anne adoeceu, a duquesa insistiu para que sua prima ficasse no lugar dela.
Dezessete filhos (perdidos)
De fato, desde seu casamento com o príncipe George da Dinamarca em 1683, quando engravidou pela primeira vez, até sua última gestação em 1699, aos 35 anos, Anne perdeu dezessete filhos. Desses, muitos foram perdidos em abortos espontâneos ou já vieram ao mundo natimortos, enquanto três sobreviveram ao parto e morreram sem chegar à idade adulta. Anne teve duas meninas em 1685 e 1686 (Mary e Anne Sophia), mas ambas contraíram catapora durante um surto da doença e morreram em 1687. Em 1689, ela teve um menino, William, que foi uma criança doente e viveu até os 11 anos, após uma febre repentina. Além de todas essas gestações, ela ainda teve pelo menos um caso de gravidez psicológica durante esse período. Em 1714, a rainha morreu sem deixar nenhum herdeiro.
Coelhos de estimação
No filme, a rainha interpretada por Olivia Colman mantém uma coleção com dezessete coelhos de estimação para se lembrar de todos os seus filhos perdidos. Porém, na biografia Queen Anne: The Politics of Passion, escrita por Anne Sommerset, não há nenhuma referência a qualquer animal doméstico e as únicas menções a coelhos aparecem na composição de banquetes. Por isso, é seguro afirmar que o diretor Yorgos Lanthimos escolheu incluir esse detalhe para ilustrar de forma mais concreta e impactante as perdas da protagonista.
Problemas de saúde
Como mostra o longa, Anne teve uma infinidade de problemas de saúde ao longo de sua vida. Desde criança, segundo Sommerset, ela já apresentava uma “espécie de defluxo nos olhos”, que lhe atormentava com dores e um lacrimejamento constante. Na busca por um tratamento, ela chegou a se consultar com um oculista que lhe recomendou “cerveja para hidratar o cérebro” e confeccionou um colírio feito de enxofre, terebintina e mel de rosas.
Eventualmente, a doença aliada aos tratamentos equivocados deixaram sequelas no rosto da rainha, que ficou “ligeiramente desfigurada”, como descreve a biógrafa. Abel Boyer, um jornalista da época, narrou o resultado como “uma contração do lábio superior que dava um ar sombrio ao seu semblante”. Já a duquesa de Marlborough declarou que a aparência da amiga parecia “congelada numa carranca taciturna e constante”.
Além do problema nos olhos, Anne também contraiu catapora na adolescência, sofreu com gota durante boa parte da vida adulta e, com o tempo, tornou-se extremamente obesa. Este fato, no entanto, é amenizado no filme. Relatos atribuem seu peso às consecutivas gestações e à artrite que, pouco a pouco, foi aprisionando a rainha a uma cadeira de rodas. Porém, seu apetite também era amplamente conhecido: além de dois cozinheiros, ela mantinha um confeiteiro particular e sua mesa estava sempre farta com guloseimas variadas. Quando Anne faleceu, relatos afirmam que seu caixão foi carregado por catorze homens e que o tamanho da caixa espantou os presentes.
Triângulo amoroso e intrigas
Apesar de muito fiel à biografia da rainha Anne, o longa de Lanthimos aposta numa sexualização que dificilmente existiu na relação entre ela, a duquesa de Marlborough e a criada Abigail Hill.
Anne e Sarah eram religiosas muito fervorosas e qualquer menção a uma relação homossexual, num tempo em que isso era visto como aberração ou subversão, causaria a elas mais medo e repulsa do que desejo.
Vale notar que Anne e George tinham um casamento estável e eram frequentemente descritos como “um casal devoto”. O fato de ela ter engravidado tantas vezes prova que sua vida sexual era bastante ativa, assim como a de Sarah, que teve sete filhos.
Por outro lado, havia tão pouca informação sobre o assunto que as relações entre mulheres não eram nem imaginadas pelos membros da corte e, portanto, não seria totalmente impossível que duas mulheres pudessem manter uma relação por anos sem que ninguém suspeitasse.
É importante salientar que, segundo a biografia de Anne, Sarah quase nunca esteve no mesmo espaço que Abigail durante suas passagens pelo palácio e, portanto, é pouco provável que tenha visto detalhes da interação dela com a rainha e suas acusações podem ter sido apenas uma forma de desmoralizar a monarca.
Essa não foi a única vez, porém, que Sarah levantou suspeitas sobre a sexualidade da amiga. Quando ambas tinham cerca de 18 anos, ela repreendeu a relação de Anne (que ainda não assumira a coroa) com outra criada – uma “primeira favorita” chamada Mary Cornwallis, que Sarah diz ter recebido “mais de mil cartas” dela. Apesar de estar, ela mesma, numa situação semelhante, Sarah nunca interpretou sua própria relação com a rainha dessa forma.
Casamento secreto
Abigail Hill e Samuel Masham se casaram em 1707 e, realmente, a união se deu em segredo, sem o conhecimento de Sarah e com a presença da rainha em pessoa. A aliança foi mais uma estratégia de ascensão social para ambos do que uma união apaixonada e, como mostrado no filme, Robert Harley (vivido por Nicholas Hoult) teve uma participação importante nesse encontro, influenciando o amigo a aceitar um casamento que ele, a princípio, não queria. Harley vinha se aliando a ela por motivos políticos, formando uma rede de influência sobre a rainha para rivalizar com os Marlborough.
Segundo a biografia, Sarah suspeitou do matrimônio quando Anne lhe pediu que liberasse 2.000 libras da bolsa privada (a duquesa era responsável pelas movimentações financeiras da rainha), que mais tarde descobriu ser um presente de casamento para os Masham.
Sarah envenenada
No filme, Sarah perde o casamento entre Abigail e Samuel porque a criada coloca veneno em sua bebida e ela acaba sofrendo um acidente com o cavalo.Quase morta, Sarah é resgatada e levada a um bordel, de onde foge para retornar ao palácio.
Apesar de acrescentar um senso de perigo à história, o envenenamento nunca aconteceu. A biografia da rainha não faz nenhuma menção ao acontecimento e as únicas ameaças de morte foram recebidas pela monarca, sem envolver nenhuma de suas favoritas. Na verdade, Sarah não estava no palácio no dia da cerimônia porque costumava passar longos períodos longe de lá, supervisionando as obras de sua futura residência em Woodstock.
Cartas calientes
Como mostrado no longa, Sarah e Anne trocaram cartas durante muito tempo, e elas continham declarações que poderiam prejudicar a imagem da rainha. Segundo um livro de memórias publicado pela duquesa em 1742 chamado An Account of the Conduct of the Dowager Duchess of Marlborough from Her First Coming to Court the Year 1710, Anne costumava dizer que “queria possuí-la completamente e que mal podia suportar a ideia de Sarah um dia escapar para outra companhia”.
Entretanto, a troca de cartas com elogios ou com romantismo entre mulheres era comum na época e não significava necessariamente uma relação homossexual. “Durante o século XVII, o amor apaixonado, mas assexual, era visto como admirável para ambos os sexos e a amizade era idealizada”, escreve Sommerset. Havia a ideia de que a amizade podia ser um sacramento maior do que o casamento, já que a conexão entre amigos era puramente espiritual e livre do elemento carnal.
Mesmo assim, a rainha era conhecida por seu exagero e suas cartas podiam soar um pouco mais escandalosas do que o normal. Em 1709, Sarah ameaçou publicar as cartas e, como mostrado no filme, não o fez. A ameaça piorou a relação entre as duas e fez com que Sarah saísse da corte, levando consigo uma “indenização” da bolsa privada. Ao contrário do que foi mostrado no filme, porém, é possível que a motivação de Sarah tenha sido mais política do que romântica, já que os Marlborough estavam em conflito com a realeza havia muito tempo por defenderem o partido rival.