Numa coisa Jair Bolsonaro está coberto de razão: não tem os atributos necessários para exercer o cargo para o qual foi eleito. Não nasceu para ser presidente da República. Se, como diz, nasceu para ser militar, perdeu a chance de sair-se bem na vocação de origem quando foi afastado da carreira por indisciplina ainda na patente de capitão, mas essa é outra história que não nos interessa diretamente, embora também tenha a ver com inépcia.
É diante da inaptidão que estamos agora. Por causa dela já se pode detectar de modo algo dissimulado, mas nítido aos olhos mais treinados da República, um processo de transferência do poder de fato do Executivo para o Legislativo. Quanto mais tolices são cometidas a partir do Palácio do Planalto e adjacências, mais o Congresso vai assumindo as rédeas da coisa pública, aqui entendida como aquilo que afeta a vida do público.
O presidente, é óbvio, detém o poder de direito, e é prerrogativa exclusiva dele o acesso àqueles instrumentos chamados metaforicamente de “a caneta”. Mas, como os maneja mal, erode sua confiabilidade para o exercício do cargo, criando um vácuo que, como se sabe, na política é espaço que não fica vago. Donde o Parlamento vai se ocupando dele. No momento, de maneira mais acentuada, a Câmara e logo adiante com protagonismo a ser compartilhado com o Senado.
Nessa transferência (involuntária, diga-se) reside um paradoxo: Bolsonaro reforça justamente o Congresso, cuja desmoralização buscou aprofundar com a disseminação da ideia de que estava todo ele comprometido com a “velha política”, a qual traduzia para o eleitorado na campanha e, depois, para os governados como sinônimo de prática sistêmica de corrupção.
Aos menos afeitos aos meandros brasilienses tal conclusão pode soar precipitada. Será? Vejamos: as reformas fundamentais para o avanço estão nas mãos do Congresso. Os presidentes da Câmara e do Senado se mostram muito mais engajados na proposta que o presidente, tomando para si a responsabilidade da aprovação e avisando que ela se dará nos termos dos parlamentares.
A reforma tributária será tocada a partir de proposição apresentada no Legislativo, que vem se interessando por uma reformulação administrativa do governo mais profunda que a parca extinção e/ou fusão de ministérios proposta na Medida Provisória 870. Fala-se no Parlamento da necessidade de renovar o pacto entre as unidades da federação, e vai se tornar inescapável uma discussão sobre reforma política. O Executivo não deu palavra a respeito, mas o assunto surgirá, ainda que no debate torto sobre o fim ou não da reeleição.
Tudo isso no âmbito do Congresso, onde o mais bobo não foi eleito e em cujo ambiente foram interditados os espaços para a discussão da tal pauta de costumes. Uma agenda ferrabrás não identificada com a média da população e, por isso, fadada ao fracasso. A despeito da vontade presidencial, que vai contando cada vez menos no âmbito geral das coisas públicas.
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636