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Pato com laranja

Um prato delicioso introduzido pela italiana que virou rainha da França e, segundo seus conterrâneos, revolucionou a cozinha do país vizinho no século XVI

Por J.A. Dias Lopes 22 jul 2019, 12h08

Os italianos dizem que a receita do pato com laranja foi levada do seu país para a França no início do século XVI, pela sua conterrânea Catarina de Médici, quando casou com Henrique II, futuro rei do país vizinho. Nascida em Florença, capital da Toscana, em uma das mais ilustres famílias da região, ela era filha de Lourenço II de Médici, Duque de Urbino, e sobrinha do papa Clemente VII. Apelidada pelo povo de Duchessina (Duquesinha), tinha na ocasião apenas 14 anos de idade. Mas era uma jovem muito inteligente, educada, elegante e refinadíssima. O embaixador de Veneza em Roma (separadas politicamente até a reunificação italiana) descreveu-a como uma mulher “pequena de estatura, magra e sem feições delicadas, mas com os olhos salientes peculiares da família Médici”.

O casamento foi realizado após a chegada da noiva em Marselha, a 28 de outubro 1533, assinalado pela troca de presentes luxuosos e por um enorme bolo, de vários andares, cuja decoração suntuosa encantou a nobreza presente. A tradição italiana conta que Catarina de Médici desembarcou naquela cidade portuária do sul da França, importante centro comercial desde a fundação pelos gregos, por volta de 600 a.C., levando dama de companhia, inúmeros serviçais e um séquito de cozinheiros e confeiteiros, além de arquitetos, decoradores e pintores que transmitiram aos parisienses o bom gosto florentino.

Sua cidade natal era o epicentro mundial da Renascença – o período que compreende o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, caracterizado por avançadas transformações econômicas, artísticas e demais refinamentos culturais. As receitas mais emblemáticas que transladou para a França seriam o pato com laranja, chamado pelos italianos de anatra (pato) all’arancia e derivado do antigo papero (marreco) all’arancia; e o frangipane, creme cozido de amêndoas que os pâtissiers franceses passaram a usar largamente no recheio de sobremesas. Parece que a noiva florentina ganhou a receita como presente de casamento do seu inventor, o príncipe romano Cesare Frangipane.

Saboreava-se anatra all’arancia na Toscana desde o século XV, quando o suco de frutas, sobretudo o dos cítricos, era empregado para temperar ou preservar carnes. Os franceses rebatizaram o prato de canard à l’orange, hoje assíduo no cardápio dos seus restaurantes pelo mundo. Um dos chefs da atualidade que o preparam com talento é o estrelado e polivalente Alain Ducasse, que tem endereços espalhados por quatro continentes. Boa de garfo e apreciadora de comidas adocicadas, Catarina de Médici tinha anatra all’arancia entre seus pratos favoritos.

A ave é temperada na Itália com sal e pimenta-do-reino, marinada no suco de laranja e vinho branco; assa no forno e vai à mesa com o molho do fundo do cozimento, coberta por zestes (tirinhas da casca, sem a pele branca) e licor à base dessa fruta; por último, decoram-na com pedaços de laranja. Na França, como registra a “Grande Enciclopedia Illustrata Della Gastronomia” (Selezione dal Reader”s Digest, Milão, 2000), é preparada em numerosas variantes, “também porque na origem este prato se fazia só com laranja amarga, a bigarde dos franceses, de sabor particular”.

Catarina de Médici: além de inteligente, educada, elegante e refinadíssima, era boa de garfo
Catarina de Médici: além de inteligente, educada, elegante e refinadíssima, era boa de garfo (Pintura de 1555, atribuída à François Clouet/Domínio Público)

Os italianos acrescentam que, secundada por sua brigada da cozinha, a mulher de Henrique II e rainha consorte da França de 1547 até 1559 levou a Paris o hábito de comer fundos de alcachofra, quenelles de peixe e ave, crepes de fígado, croquetes de miolos, ris de veau (timo), carne de vitelo, galinha d’angola recheada com castanhas, trufas e escargot, o caracol terrestre que até então os franceses consideravam comida de pobre. Ainda estimulou o consumo de alface, cenoura e rabanete e o costume de servir frutas no final das refeições. Sem contar a introdução de doces do seu agrado, como o macaron, biscoitinho crocante ou elástico, feito de pasta ou de amêndoas picadas, com açúcar e claras batidas em neve, batizado na Itália de maccheroni; e o profiterole, elaborado com uma massa açucarada, recheado com cremes, sorvetes ou caldas. Se non è vero, è ben trovato…

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Alguns autores franceses, porém, minimizam a influência gastronômica de Catarina de Médici. Um deles foi o jornalista e ensaísta francês Jean-François Revel, autor de “Um Banquete de Palavras – uma História da Sensibilidade Gastronômica” (Companhia das Letras, São Paulo, 1996). Ele contestou a versão de que a noiva florentina revolucionou a cozinha do Palácio do Louvre, em Paris, onde viviam os soberanos, banindo receitas medievais e introduzindo pratos renascentistas. Jean-François Revel sustentou não haver prova do que chamou de “presumida revolução de 1533”, referindo-se ao ano do casamento. Em sua opinião, a cozinha francesa só começou a mudar após a metade do século XVII, ou seja, cem anos mais tarde, “e mesmo assim timidamente”. Entretanto, apesar das objeções, Jean-François Revel fez uma concessão.

Admitiu que a sofisticação florentina espalhou na Europa as boas maneiras à mesa; que mostrou a importância da higiene pessoal, o hábito de lavar as mãos antes das refeições, a conveniência de usar o garfo, utensílio por muito tempo limitado ao ato de capturar as carnes nas travessas comunitárias; que convenceu os europeus da importância das pessoas se servirem nos pratos colocados à frente e não mais atropelarem grosseiramente os vizinhos; que evitassem soprar as carnes quentes, enfiar o rosto no prato, falar com a boca cheia, limpar as mãos na toalha ou nas costas dos demais convivas, nem assoar ruidosamente o nariz ou voltar para casa com restos de comida nos bolsos.

Curiosamente, porém, o nome da receita do pato com laranja seria incorreto tanto na língua italiana como na francesa. Qual a razão? Porque na Europa não existe pato, nome genérico de aves aquáticas palmípedes (com os dedos dos pés unidos por membrana), de caça ou de criação. Naquele continente vive o marreco (Anas boschas ou Anas platyrhyncha), sedentário em alguns países, mas habitualmente migrador, de corpo mais alongado, com postura vertical, bico chato e largo, cauda pequena. Espalha-se igualmente no Sul e Leste e Sudeste da Ásia, de onde seria originário, e ainda é encontrado no Norte da África e na América do Norte, especialmente nos Estados Unidos.

O verdadeiro pato (Cairina moschata) teve origem na América do Sul, sendo comum no Brasil. Portanto, o pato no tucupi, especialidade culinária do Pará, faz jus ao nome. Os peruanos garantem que nosso pato foi domesticado no Império Inca, no século XIII. Nesse sentido, deparamo-nos com um paradoxo: o rabugento, azarado e simpático Pato Donald (Donald Duck, em inglês), personagem das divertidas histórias em quadrinhos e desenhos animados de Walt Disney, deveria trocar o nome. Passaria a ser Marreco Donald. Temos uma proposta a fazer. Italianos e franceses, que tal um marreco com laranja?

RECEITA

PATO COM LARANJA

Rende 4 porções

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INGREDIENTES

.1 pato com cerca de 2 kg

.1 cenoura em pedaços

.1 cebola em pedaços

.1l de vinho branco

.Suco de 3 laranjas

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.Alguns zestes de laranja (casca das laranjas cortadas em finas tirinhas, sem a pele branca, aferventadas em água por cinco minutos e escorridas)

.1 alho-poró (parte verde) em rodelas

.2 talos de salsão em pedaços

.2 talos de salsinha

.1 raminho de tomilho

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.1 folha de louro

.50ml de azeite de oliva

.50g de manteiga

.125ml de licor de laranja

.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

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.Fatias de laranja para a decoração

PREPARO

1. Limpe bem o pato, interna e externamente. Tempere-o com sal, pimenta e reserve-o.

2. Em uma tigela, coloque a cenoura, a cebola, o vinho branco, o suco das laranjas, o alho-poró, os talos do salsão e da salsinha, o tomilho e o louro.

3. Misture bem, junte o pato e deixe-o marinar nesses temperos por cerca de seis horas.

4. Após, coloque o pato em uma assadeira e regue-o com o azeite de oliva. Passe o molho da marinada por um coador.

5.Asse o pato em forno médio (180C°), ou moderado (160C°), por cerca de 1 hora, até ficar macio e dourado, regando de vez em quando com o molho da marinada.

6.Retire o pato e deglace o fundo da assadeira, no fogo, com um pouco de água, mexendo com uma colher para que se soltem os resíduos que ficaram na assadeira. Passe pelo coador.

7. Em uma frigideira, aqueça a manteiga e faça um molho colocando a mistura coada do fundo da assadeira, os zestes e, por fim, o licor de laranja. Deixe por alguns minutos no fogo para o álcool evaporar.

8.Sirva o pato com esse molho quente, decorado com fatias de laranja.

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