A lenda de Leonardo
O autor das pinturas 'A Última Ceia' e 'Mona Lisa', nascido quinhentos anos atrás, não era vegetariano como se acreditava
Uma afirmação recorrente nas biografias de Leonardo da Vinci (1452-1519), o genial pintor, escultor, arquiteto, cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, botânico, poeta e músico do Renascimento Italiano, é que ele foi vegetariano. Sua opção alimentar voltou à berlinda neste 2019, quando se recorda os quinhentos anos da morte do autor de A Última Ceia, o mural pintado existente no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, capital da região da Lombardia, na Itália.
O Globo Repórter exibido na TV no dia 26 de abril repetiu a versão. Atribuiu a Ludovico Sforza ou Ludovico, o Moro, mecenas do pintor durante quase vinte anos, em Milão, o comentário crítico: “Leonardo era um tipo extravagante, não comia carne, nunca foi visto com uma mulher, estava sempre sozinho”.
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São considerações duvidosas. Um livro lançado na Itália levanta dúvidas sobre essas e outras questões da vida do também pintor de Mona Lisa ou A Gioconda – o mundialmente famoso óleo sobre madeira no acervo do Museu do Louvre, em Paris. Intitula-se Leonardo non era vegetariano (Maschietto Editore, Florença, 2015). É uma obra comunitária na qual os dois autores da pesquisa e do texto, Alessandro Vezzosi e Agnese Sabato, “contam o que disse, fez, escreveu o gênio em matéria de comida, alimentação e cozinha”.
Contém farta documentação e numerosa iconografia. Sustenta sem rodeios que o mestre da pintura não era vegetariano. Relaciona 25 listas de ingredientes alimentícios encomendados pelo seu atelier, nas quais a carne aparece dezessete vezes e o peixe, três. Frango era igualmente comprado. Portanto, Leonardo seria onívoro, ou seja, comeria tudo ou de tudo. “Uma tradição lendária alimentou a convicção de que fosse vegetariano”, assinalam Alessandro Vezzosi e Agnese Sabato.
Quanto ao seu desinteresse pela companhia feminina, a dupla faz uma correção de rota. Afirma que o artista “conhecia o relacionamento sexual com mulher”. É bem verdade que nunca casou, manteve-se solteiro até a morte. Entre seus numerosos esboços anatômicos, predominantemente masculinos, há apenas dois desenhos detalhados dos órgãos reprodutivos femininos.
No livro que escreveu sobre Leonardo, o pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari (1511-1574), conhecido pelas biografias de artistas italianos, refere-se a dois belos jovens amados pelo artista. O mais citado é o aluno, assistente e serviçal Gian Giacomo Caprotti da Oreno, o Salai (1480-1524), que chegou à sua casa em 1490 com apenas 10 anos e viveu com ele de 1490 a 1518. Era “ladrão, mentiroso, teimoso e glutão”, segundo o próprio protetor. Gastou fortunas em roupas e morreu provavelmente em um duelo. Salai parece ter sido o modelo dos quadros Baco e São João Batista, ambos pertencentes ao Museu do Louvre, o que não foi pouco. Há apenas quinze obras significativas de arte creditadas inteira ou parcialmente a Leonardo, pelos especialistas em história da arte.
Os autores de Leonardo non era vegetariano são credenciados. Alessandro Vezzosi dirige o Museu Ideal Leonardo da Vinci situado em Vinci, província de Florença, na região italiana da Toscana, onde o artista nasceu. Agnese Sabato, historiadora de prestígio internacional, preside a Fundação Leonardo Da Vinci Heritage, da Itália. Segundo acreditam, o vegetarianismo de Leonardo deriva de interpretação equivocada de uma carta que seu contemporâneo Andrea Corsali, navegador, cosmógrafo e astrônomo florentino, celebrado pela descoberta da constelação do Cruzeiro do Sul, enviou em 1516 de Cochim, na Índia, à Itália.
Descrevendo o povo que vivia em Guzarate, no oeste daquele país, ele observou: “Não comem coisa alguma que tenha sangue, nem entre eles se consente que se danifique qualquer coisa que possua alma, como o nosso Leonardo da Vinci: vivem de arroz, leite e alguns alimentos inanimados”. Baseados nessa carta, uma sucessão de livros espalhou a versão de que o artista abominava carne. Não por acaso, o autor de “A Santa Ceia” virou bandeira do vegetarianismo mundial, ao lado de Platão, Pitágoras, Mahatma Gandhi e Albert Einstein. A lenda foi reiterada em 1883, por exemplo, pelo alemão Jean Paul Richter, na antologia “Os Trabalhos Literários de Leonardo da Vinci”. Em 1901, o russo Dmitri Merejkowski voltou a incorporá-la no romance “A Ressurreição dos Deuses, o romance de Leonardo”, traduzido em numerosas línguas.
Ele tratou o artista como vegetariano da juventude à velhice. “O mecânico Zoroastro da Peretola (personagem do romance) me contou que Leonardo desde a infância não come carne e diz que haverá tempo no qual todos os homens, como ele, irão se alimentar exclusivamente de vegetais”, disse Merejkowski. Em 1983, acreditando que Leonardo fosse vegetariano, o erudito japonês Hidemichi Tanaka, em um dos seus numerosos estudos sobre o Renascimento Italiano, foi ao delírio. Levantou a hipótese do grande pintor sofrer influência indireta do budismo.
Alessandro Vezzosi e Agnese Sabato lamentam ter sido assim durante tanto tempo. Quando contestados, os partidários da tese vegetariana às vezes respondem que as listas de ingredientes adquiridos pelo atelier do artista poderiam ser destinadas aos alunos, não ao mestre. Trata-se, porém, de uma especulação, até porque as refeições eram sempre comunitárias, todos comiam juntos os mesmos pratos. Em 1988, na biografia “Leonardo da Vinci”, o escritor e ensaísta tunisiano de língua francesa Serge Branly descreveu: “O mestre se regala de saladas, frutas, legumes, cereais, cogumelos, massa; parece nutrir uma particular predileção por minestrone”.
A menção a esse prato vale dois parágrafos. Simples e rústico, o minestrone existe pelo menos desde o tempo dos antigos romanos. Leonardo certamente o saboreava na Lombardia, quando trabalhava em Milão, cuja população o aprecia bastante. Pode ter conhecido a receita na sua Toscana natal. A Ligúria também prepara o minestrone, temperando-o com pesto genovês, o molho à base de folhas de manjericão moídas com pinoli (sementes do pinheiro-manso), alho, sal, queijo parmesão ou pecorino ralados, azeite e pimenta preta.
O nome do minestrone deriva de minestra (sopa, em italiano), acrescida do sufixo one. Significa sopão, ou seja, sopa espessa e opulenta. A Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia (Selezione dal Readers’s Digest, Nilão, 2000) ressalta que a preparação incorpora vários ingredientes, legumes frescos ou secos, massa curta ou arroz, alguma gordura (a receita à milanesa leva a que fica por baixo da pele do porco, e ainda cotenna, a pele suína); e uma pródiga diversidade de verduras, que entram na condição de elemento de base ou com função aromática. Ingredientes atuais, tipo a batata e o tomate, foram acrescentados depois da descoberta da América. Saboreia-se o minestrone o ano inteiro, elaborado no mesmo dia ou reaquecido nos seguintes.
Compreensivelmente, esse prato não aparece no mural A Última Ceia, apesar de Leonardo ter reproduzido na mesa bíblica alimentos da Renascença Italiana – e não do tempo da última refeição que Jesus dividiu com os apóstolos em Jerusalém, antes de sua crucificação. Aliás, ele não deixou explícita a comida. Os pesquisadores enxergam sinais de pão, purê de nabo, bolinhos de peixe, além de sete copos vazios, que devem ter contido vinho.
Também procuram descobrir suas receitas. O pão seria fermentado, do jeito que se preparava na época da obra, e não ázimo, sem levedar, como o da refeição evangélica de Jesus. O purê de nabo era uma predileção renascentista. Depois de cozido e esmagado, recebia gordura de porco. Já os bolinhos de peixe tinham elaboração mais trabalhosa. Levavam ovos, farinha, sal e pimenta. Moldados em formado redondo, fritavam na banha.
Os autores de Leonardo non era vegetariano admitem a possibilidade do artista ter modificado a alimentação no final da vida, quando adoeceu em 1517, dois anos antes de morrer de problemas vasculares cerebrais (trombose, embolia, estenose ou hemorragia). Mas acreditam que o apreço pelos animais pode ter sido confundido com aversão à carne.
Em seus cadernos de anotações, repletos de desenhos, diagramas científicos e pensamentos, há condenações à forma cruel como o homem trata os animais. Eis uma frase de Leonardo muito citada: “Se és, como te descreves a ti próprio, o rei dos animais – seria preferível que te chamasses a ti próprio rei das feras selvagens porque és a maior de todas! –, por que não os ajudas para que eles possam ser capazes de oferecer os seus filhos ao teu palato, por mor do qual te transformaste num cemitério para todos os animais?”.
Diversos intelectuais do Renascimento Italiano pensavam assim. Eram adeptos do chamado animalismo filosófico. Essa corrente de opinião renegava a excepcionalidade da condição humana e atribuía igual importância às formas de vida humana e animal. Portanto, talvez fosse melhor imaginar Leonardo como um animalista renascentista e não na condição de vegetariano. Se non è vero, è bene trovato.
MINESTRONE LOMBARDO
Rende 6 porções
INGREDIENTES
.2 litros de água (aproximadamente)
.100g de cotenna (pele de porco) em finas tiras
.5 g de lardo em finas tiras
.200g de cenoura em pequenos pedaços
.3 talos de salsão em pequenos pedaços
.500g de batatas em pequenos pedaços
.1 cebola média fatiada
.1 abobrinha fatiada
.1 alho-poró fatiado
.1 colher (sopa) cheia de concentrado de tomate
.200g de feijão rajado (borlotti) previamente cozido em água
.200g de ervilhas
.200g de repolho em finas tiras
.250g de arroz (ou massa curta)
.1 colher (sopa) de salsinha picada
.1 dente de alho amassado
. 1 colher (sopa) de folhas de manjericão picadas
.Sal a gosto
. Queijo ralado e pimenta-do-reino para polvilhar
. 1 fio de azeite extravirgem de oliva
PREPARO
1.Em uma panela grande, coloque a água e os oito ingredientes seguintes.
2.Leve ao fogo, deixe levantar fervura e incorpore o concentrado de tomate. Cozinhe em fogo baixo e, após alguns minutos, incorpore o feijão, as ervilhas e o repolho.
3. Retome nova fervura e introduza o arroz ou a massa. Se necessário, coloque um pouco mais de água. Espere uns 10 ou 15 minutos e junte então a salsinha, o alho e o manjericão.
4. Tempere com sal, misture tudo muito bem e, se necessário, deixe mais algum tempo em fogo baixo.
5. Sirva polvilhado com queijo ralado e pimenta-do-reino. Ou, se preferir, regue com um fio de azeite extravirgem de oliva.