Réquiem para Stalingrado: Matarás o próximo como a ti mesmo
Todos os escombros do mundo – grandes e pequenos, irregulares e reiterados – se acumulam e se transformam na cidade
Acabei de acordar, suado e palpitante, como se o coração estivesse martelando o esterno: sonhei com Stalingrado, cidade para onde eu vou daqui a dois dias; cidade-síntese para o front mais letal da história das guerras; cidade cuja batalha disputada rua a rua, ruína a ruína, soldado a soldado começou a reverter o curso da Segunda Guerra Mundial contra os piratas nazistas.
Stalingrado está toda asfixiada pelos caças e tanques – a mão-garrote enforca o pescoço das estradas, o coturno cheio de lama pisa sobre o graveto frágil da sobrevivência.
Todos os escombros do mundo – grandes e pequenos, irregulares e reiterados – se acumulam e se transformam em Stalingrado.
Escombros fumegantes – escombros, sobretudo, fumegantes.
Não há trégua sequer entre a fumaça e as nuvens.
Escombros e corpos cubistas.
Fogo.
O magnetismo dúbio das labaredas: fogo vivaz, fogo letal; fogo que acalenta, fogo que carboniza.
Caminho a esmo entre as ruínas – as balas me matam uma, duas, três vezes.
E ali, no centro de uma pracinha, junto a um chafariz que resiste, junto às quase-estátuas de criancinhas petrificadas que dão as mãos ao redor de um crocodilo lúdico que antes cuspia água, ali eu entrevejo uma mão trêmula, uma mão em súplica: alguém sobrevive entre as ruínas.
Se urrar por socorro, o sobrevivente será executado sumariamente.
Se conseguir calar o desespero e a dor lancinante, o sobrevivente assistirá, segundo a segundo, ao próprio naufrágio.
Como a guerra nos quer répteis, rastejo até o sobrevivente, me esgueiro até seu corpo-túmulo.
Quando alcanço o braço quebradiço do sobrevivente – não mais que um graveto, um esqueleto ainda recoberto de pele –, me dou conta de que o soldado soviético, há pouco tempo, ainda brincava com soldadinhos de chumbo: um menino de olhos fundos e vazios como um poço.
Com a mão esquerda, ele puxa meu colarinho – “pelo amor de Deus!”
Com a mão direita, ele tenta estancar o umbigo hemorrágico – “pelo amor de Deus!”
(Em meio ao sonho, eu ainda consigo imaginar que, se o soldado soviético fosse uma meia, seria possível virá-lo do avesso; o umbigo sangrento, então, daria lugar ao cordão umbilical.)
– Pelo amor de Deus! – ele grita com mais força, ele grita com mais fúria (eu vejo, eu sinto, eu toco o resquício de vida sendo expelido pelo grito).
O menino cospe sangue – sua mão esquerda exige que eu me debruce para auscultar sua última súplica:
– Pega aquele revólver – ali, ali… Pelo amor de Deus, me mata agora, acaba com essa dor terrível: me mata já!
A misericórdia, em Stalingrado, embaralha as ruínas dos Dez Mandamentos, de Moisés, e do Sermão da Montanha, de Cristo.
Não matarás?
Amarás o próximo como a ti mesmo?
– Pega aquele revólver – ali, ali… Pelo amor de Deus, me mata agora, acaba com essa dor terrível: me mata já!
Matarás o próximo como a ti mesmo – eis a misericórdia em Stalingrado.
Faço menção de apontar o revólver para sua têmpora esquerda, mas o menino fardado leva a arma até o coração. (Ele quer ser explodido como o casebre que soterrou sua mãe.)
– Pelo amor de Deus, chega de dor, deixa a morte me salvar – me mata agora, por piedade, me mata logo!
Fecho os olhos (por covardia ou por culpa?), esboço um pedido de perdão, mas a mão viscosa de sangue e poeira me corta:
– Vamos, agora! Já!
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.