Deus, Alá e a flor que murchou sua beleza como derradeiro ato de liberdade
Kazan já me mostra seu sincretismo étnico-religioso junto à entrada do Kremlin local
Capital da República do Tartaristão, uma das repúblicas que formam a Federação Russa, Kazan já me mostra seu sincretismo étnico-religioso junto à entrada do Kremlin local: uma inscrição, em cirílico e em árabe, celebra a contribuição das profissões de fé ortodoxa e muçulmana para as tradições da cidade. É assim que sobrenomes como Chamilov e Kiríllov despontam em feições com olhos puxados e maçãs do rosto sobrelevadas, traços típicos dos tártaros de origem asiática. [Bem capaz de surpreender boa parte dos forasteiros, tal mescla não tem como deixar este brasileiro boquiaberto, uma vez que a mestiçagem é a razão de ser do nosso país – do horror da escravidão de negros e índios pelos portugueses ao ímpeto (até hoje dolosamente adiado) por uma verdadeira e libertária democracia plurirracial.]
Cruzada a muralha caiada e altiva do Kremlin, logo deparo com a escultura de um guerreiro tártaro de feições enrijecidas pela iminência do combate. O traje militar, não de todo distinto de um quimono, é atado por uma faixa, à altura da cintura. Com o braço esquerdo, o soldado soergue um enorme escudo; a mão direita retém uma espada de lâmina curva como a lua crescente islâmica – eis o prenúncio da jihad, a guerra santa que os islâmicos tiveram o ímpeto de mover contra o tsar Ivan, o Terrível (1530-1584), já que o adjetivo que veio a caracterizar o monarca bem nos pode mostrar sua disposição em reprimir duramente os muçulmanos que vinham professando sua fé bem antes da chegada da cruz (e das tropas) ortodoxa(s).
Mas eis que, à revelia do déspota ortodoxo e em consonância com a maioria da população de Kazan, que professa o islamismo, o Kremlin abriga em suas muralhas uma mesquita de abóbada azul vivaz circundada por quatro minaretes, em cujos topos a lua islâmica desponta voltada para Meca. Como sói acontecer, trechos do Alcorão percorrem as paredes da mesquita com a plasticidade dos caracteres árabes.
Como o Ocidente e suas (neo)cruzadas tendem a ter uma visão extremamente limitante e limitada do islamismo, compartilho com os leitores e leitoras do Diário de um escritor na Rússia alguns trechos do “Sermão de despedida do profeta Maomé”, um dos textos religiosos mais libertários com os quais já tive contato. Li tal sermão pela primeira vez, em inglês, no pátio da Mesquita Azul, em Istambul, na Turquia; como o Ocidente é cioso de sua própria genealogia para a construção dos direitos humanos, os muçulmanos parecem (e não mais do que parecem) desprovidos da possibilidade de alteridade e empatia. Não à toa, entretanto, o “Sermão de despedida do profeta Maomé” foi arrolado como um prenúncio da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eis, então, alguns fragmentos maometanos que ressoam e renovam as palavras mais emancipatórias de Jesus Cristo:
“Ó Povo, assim como consideram esse mês, esse dia e essa cidade como sagrados, considerem a vida e a propriedade de todo muçulmano como sagrados. Devolvam os bens que lhes forem confiados aos seus legítimos donos. Não prejudiquem uns aos outros para que ninguém os prejudique. Lembrem que encontrarão seu Senhor, e que Ele pedirá contas de seus atos. (…) Não devem infligir nem sofrer qualquer injustiça.
“Ó Povo, é verdade que têm certos direitos em relação às suas mulheres, mas elas também têm direitos sobre vocês. Lembrem que as tomaram como esposas somente sob a custódia de Deus e com Sua permissão. Se elas mantiverem os seus direitos, então a elas pertence o direito de serem vestidas e alimentadas com gentileza. Tratem bem suas mulheres e sejam gentis com elas, porque elas são suas parceiras e ajudantes dedicadas.
“Toda a humanidade descende de Adão e Eva. Um árabe não é superior a um não-árabe, nem um não-árabe tem qualquer superioridade sobre um árabe; o branco não tem superioridade sobre o negro, nem o negro é superior ao branco; ninguém é superior, exceto pela piedade e boas ações. Aprendam que todo muçulmano é irmão de todo muçulmano e que os muçulmanos constituem uma irmandade. Nada que pertença a um muçulmano é legítimo para outro muçulmano a menos que seja dado de livre e espontânea vontade. Portanto, não cometam injustiças contra vocês mesmos.
“Lembrem que um dia se apresentarão perante Deus e responderão pelos seus atos. Então fiquem atentos e não se desviem do caminho da retidão após eu partir”.
A 100 metros (se tanto) da mesquita, deparo com uma igreja ortodoxa encimada por bulbos azuis, ao centro dos quais desponta um bulbo dourado e sobrelevado representando a primazia de Deus.
Por séculos desde Ivan, o Terrível – a mando de quem tal igreja ortodoxa foi erigida –, o canal Bulac cindiu Kazan em duas metades antagônicas: de um lado, os cristãos ortodoxos; do outro, os tártaros muçulmanos. Se nos lembrarmos da águia bicéfala como símbolo da monarquia tsarista, teremos que a águia voltada para o Ocidente (a Europa) e a águia voltada para o Oriente (a Ásia) só não se devoravam porque a coroa do tsar, pairando em meio a ambas para conter o potencial fratricídio, (supostamente) suplantava e unificava as dissensões. Para além, no entanto, do cetro monárquico – e a despeito da nova aliança (ou melhor, da nova cumplicidade) entre Estado e ortodoxia sob Vladimir Putin –, o Kremlin de Kazan dá o tom para a
coexistência pacífica entre cristãos e muçulmanos.
Ocorre que a convivência entre fiéis de credos distintos em meio aos territórios russófilos pluriétnicos e plurirreligiosos tem um histórico profundamente encarniçado.
Recorramos, então, à novela Khadji-Murát, de Liev Tolstói(1) (1828-1910) – publicada, postumamente, em 1912 –, para, em meio ao Cáucaso convulsionado por guerras étnico-religiosas entre cristãos e muçulmanos, entrarmos em contato com momentos cruciais da vida do comandante regional Khadji-Murát, rebelde que já lutara ao lado do imame Chamil (1797-1871), chefe caucasiano que, a partir de 1834, moveu
guerra aos russos durante 25 anos.
Quando o narrador de Tolstói nos apresenta Khadji-Murát, o combatente se debandara para o lado dos russos. A princípio, imaginamos que Murát traíra Chamil pela vontade de poder, pois o (suposto) desertor já “imaginava como avançaria contra Chamil à frente do exército que [o comandante russo] Vorontzóv lhe daria e como o faria prisioneiro; depois, o tsar russo iria premiá-lo, e ele governaria não só a Avaria, mas toda a Tchetchênia por ele submetida”(2) . Logo descobrimos que, em meio às disputas de poder, Chamil aprisionara os familiares de Khadji-Murát – daí a guinada do rebelde em direção aos cristãos e daí o ímpeto por vendeta. [Exímio conhecedor das contradições humanas, Tolstói entrevê o altar da jihad (guerra santa) soerguido pela natureza profana dos homens.]
Panoramicamente, eis os marcos narrativos de Khadji-Murát. Ocorre que, junto com o fluxo da estória, o breve romance parece desvelar um afã tolstoiano por cenários e costumes típicos do Cáucaso, afã que, encadeado poeticamente à narrativa, chega a conferir estatura ontológica às descrições, como se a natureza e a cultura do Cáucaso fossem elevadas à condição de personagens. É assim que “margaridas insolentes” se esgueiram entre “malmequeres brancos e jeitosos, de pólen amarelo vivo”(3) ; é assim que “doía olhar para o aço das baionetas e para o brilho, semelhante a pequenos sóis, que aparecia subitamente sobre o bronze dos canhões”(4) ; é assim que a “fragrância orvalhada da noite de lua” ressoa “o canto e o silvo de alguns rouxinóis, vindos do jardim pegado à casa”(5) ; é assim que a lembrança do avô de Khadji-Murát, “de rosto enrugado e
barbicha grisalha”, o obriga a proferir as orações diárias com suas “mãos de veias intumescidas” 6 . [Em Khadji-Murát, a sobreposição vertiginosa de descrições- personagens como que transforma o foco narrativo em tomadas fílmicas – não à toa, o cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948) apreendeu germes de narrativa cinematográfica em meio à pulsão imagética de Tolstói.]
Em um breve preâmbulo a Khadji-Murát, o narrador nos diz que tentara colocar uma bardana de haste rija e fibrosa no centro de um ramalhete com as mais belas flores do Cáucaso. A bardana resistiu vigorosamente à subjugação e, quando seu caule enfim se partiu, a flor murchou sua beleza como um derradeiro ato de liberdade. Ao fim da estória, o narrador retoma a imagem da bardana indômita como uma metáfora para o destino de Khadji-Murát, cuja vida premida entre a dominação russa, a guerra santa e a vendeta pelos entes queridos o transforma em uma personagem trágica, para quem, ainda que a morte seja certa e iminente, é preciso fazer o elogio do próprio naufrágio.
1 A edição de Khadji-Murát que tenho em mãos foi publicada, em 2017, pela Editora 34, de São Paulo, com tradução de Boris Schnaiderman. Todas as citações da obra presentes neste texto partem dessa edição de Khadji-Murát.
2 Khadji-Murát, p. 52.
3 Khadji-Murát, p. 25.
4 Idem, pp. 126-127.
5 Idem, pp. 162-163.
6 Idem, p. 166.
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.