Os ensinamentos do pai da ‘Ética’ a uma era de excessos e extremos
Clássico do filósofo grego Aristóteles sobre caráter, virtude e felicidade tem nova tradução prezando por fidelidade ao texto original

Não é qualquer livro que resiste a quase 24 séculos ganhando leitores, estudos e edições. A Ética a Nicômaco, do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), integra esse panteão. Mais do que um documento histórico a ser contemplado por acadêmicos, o texto que condensa ideias e propostas sobre caráter, justiça e felicidade segue vivo e dando o que pensar.
Quem quiser tirar a prova e estabelecer contato reto e direto com o clássico agora tem às mãos a novíssima tradução de André Malta, professor de língua e literatura grega da USP, recém-publicada pela Editora 34, que prima pela fidelidade ao original.
Se pudéssemos resumir a obra em um tweet, digitaríamos que a “a virtude está no meio”. Mas Ética a Nicômaco, obviamente, vai muito além disso – assim como, felizmente, diálogos e discussões não se restringem à arena das redes sociais.
Tratado sobre caráter (“ética” vem de ethos, “caráter” em grego), condutas, justiça, amizade e felicidade, o livro mais popular de Aristóteles é um manual do usuário-cidadão para uma vida bela e boa, que nunca perde de vista a premissa de que o bem-estar do indivíduo não se separa do bem-estar da pólis, a comunidade.
Nestes tempos tocados por excessos, extremismos e vícios – tudo que se opõe à virtude aristotélica -, a obra que viria a despertar um longo fluxo e refluxo de debates filosóficos lega conceitos e noções que, de tão atemporais, parecem ter se inscrito no senso comum, ainda que seu corolário seja frequentemente ignorado por aí.
A tradução de André Palma se destaca pelo retorno às raízes, respeitando as construções, os termos e o estilo do discípulo de Platão e mestre de Alexandre, o Grande. Isso porque outras edições – algumas delas até consagradas – vertem o original ora rebuscando, ora comentando as frases do autor.
No volume bilíngue da Editora 34, pelo contrário, somos apresentados à prosa peculiar de Aristóteles, por vezes simples e direta, por vezes repetitiva, por vezes um tanto quanto elíptica e labiríntica – com as saídas apontadas pelas notas do tradutor, que, no prefácio e no posfácio, também nos bota a par do contexto e das particularidades da obra.
Relativizando e atualizando o que merece ser relativizado e atualizado, veremos que diversas prescrições de mais de 20 séculos atrás do pensador não caducaram. Pelo contrário, ainda ostentam seu valor – e urgência.
Com a palavra, o professor André Malta.

Por que acredita que a Ética a Nicômaco resistiu tão bem à passagem do tempo?
Acredito que por dois motivos principais. Primeiro porque Aristóteles é um pensador muito refinado. Em todas as áreas a que se dedicou encontramos um tipo de sistematização e análise que ao longo dos séculos tem sido referência para a investigação científica. O segundo motivo tem a ver com o foco da obra: a busca de balizas para o comportamento humano. Trata-se de algo já presente na filosofia de Sócrates e de Platão, que falam da importância das “virtudes”, mas com Aristóteles temos enfim uma teorização ampla, sem perder de vista a realidade prática.
São questões que versam sobre como viver a vida da melhor maneira possível, de que forma lidar com os desejos e as emoções, qual a conduta esperada nas relações interpessoais, e assim por diante. Ou seja, temos na Ética a Nicômaco o encontro de uma mente privilegiada com um tópico fundamental. É um campo de estudo, aliás, que tem se expandido nas últimas décadas e vem sendo chamado de “ciência da felicidade”.
Que mensagem ou ensinamento proposto pelo filósofo nesta obra seria, em sua visão, o mais urgente à sociedade contemporânea?
A parte mais famosa é a que expõe a “Doutrina do Meio Termo”. Isso porque traz uma mensagem fácil de compreender: devemos evitar os extremos e procurar a medida certa, ainda que esta nunca seja exata. Por exemplo, em relação ao sentimento da raiva: para Aristóteles, precisamos achar um ponto intermediário entre sentir raiva de menos e raiva de mais. A mesma coisa valeria para a coragem, o sexo, o dinheiro, a exposição social etc.
Importante dizer que esse “meio” que o filósofo esmiúça era um ideal cultivado pelos gregos havia muito tempo. A nossa época, por outro lado, mostra-se propensa a incentivar excessos e a identificar a felicidade com a procura de uma satisfação total. Por isso a leitura da Ética a Nicômaco pode ter uma atualidade que extrapola os muros da academia.
Aristóteles frequentemente limita os direitos, deveres e potenciais dos cidadãos a um grupo restrito de seres humanos – homens, nobres etc. -, considerando, evidentemente, as noções vigentes no mundo grego antigo. Seria esse o aspecto que mais envelheceu mal no livro?
Não diria “envelhecer mal”. Claro que existem muitas diferenças. A mais evidente diz respeito à moralidade dominante no Ocidente, norteada pelos valores cristãos e, mais recentemente, pelo individualismo. Nossa subjetividade é outra. A discussão no tratado também traz as marcas de uma estratificação social rígida, além do sexismo e do escravagismo. Isso não significa, a meu ver, que devemos nos colocar numa posição de superioridade ao ler a obra.
Em comparação, tivemos sim conquistas importantes, impensáveis para um homem do século IV a.C. Mas a constatação dessas diferenças entre nós e os gregos antigos pode ajudar a pôr em relevo os muitos elementos de continuidade. Permanecemos em essência os mesmos seres humanos. E o que Aristóteles restringe a uma classe ou a um gênero podemos hoje automaticamente expandir para outro grupos, seguindo nossa visão inclusiva.
Digamos que o texto de Ética a Nicômaco é bastante peculiar, ao menos aos nossos olhos contemporâneos. Qual foi o grande desafio na tradução?
O maior desafio foi emular o andamento da prosa aristotélica de modo consistente. Em geral, os tratados de Aristóteles são traduzidos de forma desenvolvida, com acréscimos e paráfrases. Tentei preservar seu estilo seco e compacto, sem comprometer a compreensão em português, e anotei os poucos momentos em que ele parece fugir do próprio padrão. Aqui também a dificuldade foi achar uma medida justa, que é invariavelmente imprecisa.
Outro desafio foi o vocabulário. Fiz questão de manter, por exemplo, a distinção entre termos que são recorrentes e com sentido muito próximo (“bom”, “belo”, “decente” e “nobre”, por exemplo), os quais costumam vir vertidos por uma palavra só, ou de maneira indiscriminada. Além disso, quis inovar um pouco e deixar de lado uma ou outra opção já consagrada em português, que eu indico para o leitor. Acredito que uma nova versão de um texto clássico, ao buscar outras soluções possíveis para problemas específicos – porque sempre há outras soluções no horizonte -, pode contribuir para revigorar a sua recepção.