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“O gosto pela leitura se transmite. E antes de tudo em família”

É o que defende a antropóloga Michèle Petit, que compartilha, em livro, sua visão sobre o papel da leitura em nossas vidas, sobretudo em tempos de crise

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 out 2024, 13h16 - Publicado em 23 out 2024, 12h57

“O utilitário nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda ou a agricultura”. É com essa frase, logo na abertura de seu novo livro, que a antropóloga francesa Michèle Petit nos convida a meditar sobre o valor da leitura para nossa espécie. De fato, o que nos motiva a (sobre)viver não são apenas comida e dinheiro.

Ler, essa habilidade única ao Homo sapiens (até que se prove o contrário), não só oferece caminhos para se orientar e navegar pelo mundo como, em contextos críticos, pode conceder coletes salva-vidas a fim de se aguentar a tormenta. Essa é uma das convicções da pesquisadora de 78 anos do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, que se esmerou em investigar a contribuição da leitura para a nossa (re)configuração como sujeitos e coordena, desde 2004, um notável programa internacional de leitura em espaços de crise, em que os livros se tornam ferramentas de suporte, imaginação e reconstrução entre grupos de imigrantes, refugiados e marginalizados.

Com anos de estudos e vivências pelo globo (inclusive na América Latina), Petit reúne na obra Somos Animais Poéticos, recém-publicada pela Editora 34, textos que discutem os poderes e desafios da leitura sobretudo em tempos de crise – seja numa pandemia que nos confinou e traumatizou, seja entre quem teve de abandonar o lar para fugir de uma guerra ou da violência. Os livros se transformam, assim, não apenas em refúgios, mas em bússolas ou trampolins para uma nova forma de existir e (sobre)viver.

Somos animais poéticos

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Com a palavra, Michèle Petit.

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Qual seria o grande desafio para a leitura em um mundo hoje atormentado por guerras, mudanças climáticas e novos riscos de epidemias?

Ainda mais em tempos de crise, o desafio para o hábito de ler seria ao menos triplo: melhorar o desempenho na escola e no mercado de trabalho para encontrar ocupações mais interessantes e bem remuneradas, visto que a relação com a cultura escrita segue sendo um fator decisivo de êxito nesse contexto; ter acesso a informações de qualidade para analisar textos, desmontar fake news, construir um enfoque crítico, argumentar e ter voz e voto no espaço público; e beber das imensas reservas da literatura e do saber sem que isso tenha uma utilidade imediata, a fim de alimentar os sonhos, reativar a disposição inventiva, construir sentidos, explorar o mundo interior, transformar a dor, o medo e a inquietude em beleza e pensamento, preocupar-se com o mundo, sentir-se parte dele, enxergá-lo e escutá-lo melhor, o que é o primeiro passo para também cuidar dele.

Acredita que a vida digital está corroendo nosso potencial como leitores e apreciadores de livros? Em que medida isso compromete nosso animal poético?

Não estudei especificamente os usos da internet pelas novas gerações. Quem o fez costuma não concordar, e é muito difícil escapar de discursos tecnófilos ou tecnófobos. Não sei quanto já exploraram com profundidade as experiências diante da tela, o que se vive e se sente com elas e o que fica na memória depois. Mas é certo que muitos psiquiatras infantis concordam em evitar o uso de telas antes dos 3 anos de idade devido aos seus efeitos negativos (e não apenas nos futuros leitores) e em regular esse uso depois dos 3 anos.

Todo mundo pode comprovar que a vida digital oferece um monte de conteúdos de pouco interesse e, de vez em quando, permite descobrir e compartilhar alguns tesouros. Espalha os piores discursos de ódio com uma velocidade espantosa e, às vezes, revela uma solidariedade inesperada. Algumas pessoas conseguem expressar ou nutrir seu animal poético inclusive nas redes, e certamente existem facilitadores culturais que, mais do que controlar ou regular o acesso, podem fazer com que crianças e jovens vivam outras experiências digitais, com um ritmo diferente.

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Como diz Graciela Montes [escritora argentina]: “Meu conselho hoje é estimular tudo que se opõe ao surfar [na internet]. Não resvalar pelas coisas, mas lê-las”. Notemos também que as diferenças sociais repercutem aqui: nos setores de educação superior, os pais associam uma utilização considerável de telas a um nível alto de leitura de livros e à convivência com os equipamentos culturais, transmitindo essa visão acumulativa aos seus filhos. Ao contrário, jovens mais carentes, especialmente os meninos, hoje estão apenas absorvidos pelas telas.

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A antropóloga francesa Michèle Petit, autora de ‘Somos Animais Poéticos’ (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

 

Que tipo de iniciativa julga inspiradora para buscarmos formar uma nova geração de leitores e de jovens que veem valor e beleza nos livros e nas artes?

Hoje como ontem o gosto pela leitura e pelas artes se transmite. E antes de tudo em família. Uma pessoa se torna leitora porque existe em sua casa um clima, um ambiente, que torna desejável se apropriar de uma cultura escrita e das artes. Os livros e outras obras vivem com a família, e nela se preservam momentos de transmissão poética.

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Quando esse não é um assunto de família, um encontro pode mudar a relação com a leitura e as artes. É o caso de espaços de educação artística e cultural que estudei em contextos críticos, nos quais facilitadores culturais (professores, bibliotecários, agentes promotores de leitura…) conjugam frequentemente a literatura, a arte e, às vezes, a ciência. Esses espaços são desenvolvidos sem pensarmos numa rentabilidade imediata. Os jovens são considerados ali em sua dimensão psíquica e física, não apenas cognitiva.

As obras usadas pelos facilitadores culturais não são tanto conteúdos para se analisar, mas oportunidades de pensar, sentir e conversar. Nesses espaços há “jogo” em todos os sentidos da palavra. Cada um é considerado um sujeito diante do qual demonstramos confiança em suas capacidades, respeitando suas falas, ritmos e culturas próprias.

Não existe uma receita mágica, senão uma assombrosa variedade de experiências e invenções. Experiências que apresentam bons resultados, não só para o futuro como leitor. Elas contribuem para abrir uma margem de manobra na vida dessas pessoas, ampliando seu campo de possibilidades e redescobrindo sua noção de futuro. E permitem construir formas de convivência mais amáveis e solidárias. Foi também por isso que escrevi este livro, dando tantos exemplos: para que essa arte possa se espalhar.

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