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Pequenos diálogos para desbravar grandes obras & ideias − e cuidar melhor de si e do mundo

“Não podemos nos dar ao luxo de perder a esperança na decência humana”

É o que defende Sarah Bakewell, autora de um livro que percorre sete séculos de ideias e movimentos humanistas - e suas inspirações para o presente

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 10 dez 2024, 17h00

Se é com grandes poderes que vêm grandes responsabilidades, temos muito o que aprender e a recapitular com os homens e mulheres que pensaram e lutaram para colocar o bem-estar da humanidade em primeiríssimo plano. Hoje a gama de direitos, deveres e liberdades em nossas mãos parece tão sólida e natural que talvez não tenhamos noção (ou simplesmente nos esqueçamos) de que no passado as coisas não funcionavam assim.

Pois é esse olhar pelo retrovisor histórico, numa estrada cheia de personagens fascinantes – uns mais, outros menos famosos – e lições de casa para os dias atuais, que podemos empreender em Humanamente Possível, da escritora e pesquisadora inglesa Sarah Bakewell, publicado pela editora Objetiva.

O livro traça, ao longo de sete séculos, a trajetória e a evolução do pensamento humanista. Tudo começa no século XIV, com Petrarca e outras mentes inquietas da Península Itálica que, bebendo de fontes da Antiguidade até então aprisionadas pelas rédeas da Igreja Católica, passam a botar no centro do mundo, das obras e da vida o homem e sua existência real, assenhorando-se de um privilégio antes restrito a Deus e com consequências previstas apenas no Além.

Ao plantar-se no (e como) axis mundi, o ser humano semeia seu senso de propósito, curiosidade e inventividade em terreno fértil, e é na esteira da (re)descoberta de seus potenciais e limitações (inclusive físicas e biológicas) que ele abrirá caminho para o Renascimento, o Iluminismo e as revoluções científicas, industriais e tecnológicas que tantos horizontes alargaram. Essa rota, claro, não é tranquila nem linear, como demonstram os inúmeros recuos e horrores pelo caminho, a exemplo da escravidão nos projetos coloniais e das guerras devastadoras na primeira metade do século XX.

Bakewell, humanista convicta, retrata dos mais célebres aos menos conhecidos expoentes da tendência, e um dos trunfos do livro é justamente nos apresentar a figuras como a pensadora italiana radicada na França Cristina de Pisano e o filólogo italiano Lorenzo Valla, do distante século XV, o líder político americano Robert Ingersoll, de 1800 e bolinha, e o escritor russo Vassily Grossman, do já mais familiar século XX.

Se o humanismo começou como uma cosmovisão que colocava o homem branco e nobre no holofote, ao menos progrediu para abarcar aquilo que, por essência, nasceu para abarcar: o gênero humano e suas diferenças. E é assim que a autora nos conta como o movimento passa a abraçar, nem sempre sob ventos auspiciosos, a diversidade – e finalmente mulheres, negros, gays e outros grupos até então excluídos da festa podem frequentá-la e contribuir para o avanço da causa.

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No século XXI, quem diria, o humanismo continua sua batalha existencial. Guerras, ameaças climáticas, ondas conservadoras e protecionistas… As fronteiras que essa escola de pensamento expandiu parecem no mínimo sob ataques e rompantes de retrocesso. Mas, se as soluções não vierem de nós mesmos, de quem há de vir?

Com a palavra, a autora.

Humanamente possível

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Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre a trajetória e a evolução do humanismo?

Tudo começou quando percebi que a maioria dos escritores e filósofos que eu gosto de ler, e aqueles sobre os quais escrevi antes, tinham algo em comum: escreviam sobre humanidades e estavam interessados ​​no que significa ser um ser humano e em como podemos tentar viver uma vida boa. Nesse sentido, eles eram humanistas. Quer tivessem ou não uma fé religiosa, estavam simplesmente mais interessados ​​na vida humana na Terra do que em qualquer ideia de uma vida após a morte no céu.

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Queria escrever sobre o que os unia, mesmo em períodos históricos diferentes. Depois percebi que muitos dos seus princípios também são compartilhados por organizações humanistas modernas, como a Humanitas Internacional. O movimento humanista defende a busca de significado e propósito moral por meio de ligações com outros seres humanos e outras vidas em geral, em vez de se basear em dogmas religiosos ou na crença no “além”. Nesse ponto, percebi que sempre fui uma humanista. O desafio era reunir todas as vertentes históricas, reconhecendo ao mesmo tempo as suas diferenças.

Entre tantos pensadores, autores e ativistas abordados no livro, qual é o seu preferido?

É difícil escolher, mas vamos pegar apenas um! Tenho uma admiração particular por Lorenzo Valla, um italiano do século XV. Ele era um especialista em filologia grega e latina. Talvez isso não seja muito excitante, mas ele usou esses atributos de uma forma bastante provocativa. Valla se debruçou sobre um documento conhecido como Doação de Constantino, supostamente escrito no século IV, que registrava que o imperador romano Constantino havia cedido uma enorme área da Europa Ocidental ao controle da Igreja Católica. Só que ele usou seu conhecimento do latim para apontar que aquele documento não poderia ter sido escrito no século IV, porque apresentava palavras que não eram usadas naquela época. A suposta doação teria sido escrita mais tarde e, portanto, era uma falsificação! Na verdade, descobriu-se que foi elaborada no século VIII e a Igreja a utilizou para justificar a reivindicação de terras.

Valla não só tinha os conhecimentos necessários para provar isso, mas também não tinha medo da autoridade da Igreja – em um período em que poderia ser muito perigoso ir contra o Papa. E essa foi apenas uma das batalhas que ele travou. Era um homem bastante agressivo, na realidade, e não tenho certeza se teria gostado dele pessoalmente. Mas eu o admiro. Pensemos em todos os estudiosos de outros tempos e lugares que se recusaram a ceder a pressões políticas e insistiram em suas provas e na verdade.

Qual é a maior ameaça ao legado humanista hoje?

A visão de mundo humanista nunca irá simplesmente “vencer” uma discussão histórica e permanecer incontestada. É uma batalha que nunca termina. Existem hoje muitas forças contra o humanismo, das quais as mais óbvias são instituições religiosas de alto controle, especialmente onde ganham poder político. Além disso, temos os populistas autoritários, que muitas vezes recorrem a ideias conservadoras para reforçar o seu poder – sem necessariamente acreditar sinceramente nelas. A exemplo de outras pessoas, tenho dificuldade em manter o meu otimismo neste momento, olhando para os acontecimentos no mundo, mas não podemos nos dar ao luxo de perder a esperança na decência e na moralidade humana. Caso contrário, cairíamos no desespero e estaríamos perdidos.

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Ao lermos seu livro, ficamos com a impressão de que o humanismo se abriu à diversidade ao longo do tempo. Mas até que ponto ele também passou a respeitar a natureza e outras formas de vida?

Hoje o movimento humanista enfatiza o fato de que a vida humana não pode ser vista isoladamente de outras formas de vida na Terra. Não faria sentido imaginar os humanos como almas puras e separadas, de alguma forma flutuando acima do resto da vida. Somos obviamente seres naturais, profundamente enraizados no mundo, e precisamos nutrir toda a rica biodiversidade que nos sustenta. Também temos uma responsabilidade moral para com o resto da vida. A ideia de que os humanistas só se preocupam com os humanos é um completo mal-entendido; o oposto é o verdadeiro.

Ao mesmo tempo, os humanistas também sabem que não podemos simplesmente rezar para nos salvar ou legar a responsabilidade a um poder maior. Nós causamos as emergências atuais e a única maneira de resolvê-las é assumir a responsabilidade e aplicar as nossas habilidades para saná-las. Na verdade, temos as qualidades certas: somos tecnologicamente engenhosos, bons solucionadores de problemas e podemos até comunicar e colaborar bem quando realmente queremos. Basta ver como a comunidade científica internacional trabalha em conjunto para atingir seus objetivos. Mas a comunidade política internacional, nem tanto. O desafio é, de alguma forma, nos engajarmos a usar essas habilidades para alcançar tais metas. Eu gostaria de saber como fazer isso!

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