Existe um lado bom do Alzheimer?
Cuidando da própria mãe, pedagoga aprendeu a lidar com os desafios da doença e compartilha em novo livro suas descobertas e conselhos. Leia um trecho

“Tenho um familiar com Alzheimer em casa” era o nome do grupo que encontrei no Facebook, procurando conhecer pessoas que, como eu, estivessem enfrentando os desafios da doença. Porém, em vez de partilha, o que encontrei foi desespero em postagens que descreviam situações duras, vídeos de momentos de crise, queixas de cuidadores exaustos, pessoas idosas tirando todas as roupas do armário, familiares em sofrimento por causa da privação de sono, enfim, um lugar de lamentação e revolta.
Naturalmente me identifiquei com a dor inerente à doença, revivi momentos difíceis pelos quais já tinha passado e temi por outros que poderia ainda vir a passar, uma vez que aquele conteúdo era incômodo justamente por escancarar a realidade de como é cuidar de um familiar com Alzheimer. Em seguida, entretanto, fui tomada pela vontade de mostrar que tudo poderia ser mais leve, como eu vinha aprendendo nos primeiros anos cuidando da mamãe.
Resolvi participar da comunidade postando vídeos de momentos bons, em que ela cantava, brincava com a sua boneca ou simplesmente sorria. Mostrei também a forma como eu falava com ela, com calma e delicadeza, até em rotinas desafiadoras como a hora do banho. Depois de ter encontrado tantas cenas deprimentes, minha intenção era ajudar aquele grupo de alguma forma e inspirar as pessoas a tentar ver o Alzheimer com um olhar diferente.
No princípio deu certo: outros participantes começaram a perguntar por mamãe, pedindo notícias da Francisquinha – como optei por apresentá-la nas redes sociais. Seu nome de batismo finalmente começou a ser usado. Mas, para minha surpresa, o nosso jeito provocou incômodo. O moderador original do grupo havia saído da rede após a morte do familiar, e naquele momento surgiu um novo responsável, que se mostrou insatisfeito com o destaque que a nossa presença estava ganhando. Alegou que eu estaria usando o grupo só para “ganhar likes”, como se as minhas postagens não fossem reais.
Argumentei que aquele era de fato o nosso dia a dia, que provava ser possível construir uma rotina mais leve, mas não houve conversa e fui excluída do grupo. A partir dali, quando dava vontade, postava um vídeo ou outro no meu perfil pessoal. Uma pessoa do antigo grupo me encontrou e partilhou minha página com os demais participantes, que começaram a me seguir. Um deles era uma psicóloga que, vendo potencial nas minhas postagens, sugeriu que eu criasse um canal no YouTube.
Era uma ideia que nunca tinha passado pela minha cabeça, mas na hora pensei: por que não? Foi assim que, em maio de 2016, criei o canal “O bom do Alzheimer” no YouTube, mostrando como era o meu dia a dia com mamãe. Como eu não tinha qualquer pretensão, postava do meu jeito: gravava vídeos na vertical (depois aprendi que na horizontal era mais adequado), não tinha frequência de postagem nem padrão, fazia vídeos longos demais, tudo de forma inteiramente espontânea. Eu ligava a câmera e pronto.
O que aconteceu foi que, sem seguir nenhuma cartilha ou qualquer orientação, o canal começou a crescer organicamente. Não sei explicar o motivo, mas imagino que isso tenha acontecido porque o Alzheimer costuma ser tratado apenas com pesar, e de repente as pessoas encontraram um conforto no meu modo de enxergar a doença, tentando lidar com mamãe com leveza.
Desde o início era gratificante alimentar o canal, por poder trocar experiências com pessoas que estavam no mesmo barco que eu. Ainda que o simples prazer da partilha fosse suficiente para que eu continuasse postando, em agosto de 2016 recebi uma correspondência do YouTube que me credenciava a monetizar o canal.
Eu tinha alcançado mil inscritos e atingido o número mínimo de horas assistidas em todos os vídeos. Num primeiro momento não entendi nada. Como assim? Eu nem sabia que o YouTube oferecia algum tipo de remuneração! Foi então que me dei conta de que poderia ganhar dinheiro com o que estava fazendo. E foi na hora certa, porque eu de fato precisava de uma renda
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Falar com a câmera do celular é solitário, e só sei que o alcance é grande porque vejo o número de seguidores. Até hoje não me acostumei a ser reconhecida na feira, no mercado, na banca de jornal. Já vieram falar comigo em uma estação de trem, e até num shopping em Portugal reconheceram minha voz. Nas lives costumo perguntar de onde estão me assistindo: tem gente até no Japão! Eu me surpreendo muito quando me reconhecem, me abraçam e me agradecem, o que me deixa feliz e comovida por alcançar tanta gente.
Fazendo lives de dentro do meu quarto, consigo ter um alcance enorme. Isso mostra quanta gente quer aprender. Depois de me ouvirem contar o que tirei de melhor do convívio com a mamãe, a maior parte dos comentários que recebo é de agradecimento. Tenho seguidores que já perderam o familiar e lamentam não terem me conhecido antes.
Outros entram só para ver a Francisquinha, porque viraram fãs. Tem quem diga que não convive com ninguém que tenha Alzheimer, mas mesmo assim me segue porque gosta do meu jeito de falar sobre amor e família. Outros descobriram, graças aos meus vídeos, que um familiar está nos estágios iniciais da doença. Não custa repetir mais uma vez: prestar atenção nos comportamentos das pessoas idosas é da maior importância, porque quanto antes forem implementados o tratamento e os cuidados específicos, mais tempo de autonomia o paciente terá.
Quando falo sobre como lidar com a agressividade, a reação mais comum é: “Nossa, era tão simples e eu não enxergava.” Muitos perguntam se ainda dá tempo de mudar. Respondo que você pode levar amor a qualquer momento, não importa se o doente está na fase avançada ou mesmo se está acamado.
É preciso entender a doença para mudar a forma de olhar para o doente. Depois que entendi isso, voltei a enxergar mamãe por trás do Alzheimer. Ela ainda está ali. Uns chegam a mim por curiosidade, outros por desespero, mas o que faz com que permaneçam comigo é o amor pelo seu familiar. Por isso, tento ensinar a falar com mais carinho e empatia com aquela pessoa que envelheceu, que às vezes nem tem Alzheimer, mas vai se beneficiar do meu conteúdo. É importante entender que a velhice chega para todos – a alternativa é a morte.
* Claudia Alves é pedagoga e gerontóloga e cuidou da mãe com Alzheimer por 12 anos. É autora do livro a ser lançado em maio O Lado Bom do Alzheimer, pela Editora Sextante