A psiquiatra que toca nas feridas e nas lacunas da psiquiatria
Juliana Belo Diniz questiona, em novo livro, ideias e práticas que se tornaram senso comum na abordagem de transtornos como ansiedade, depressão e TDAH

Vivemos um boom de transtornos mentais. Medicamentos são a solução para ansiedade e depressão. Há uma epidemia de TDAH em curso. Doenças psiquiátricas são doenças dos neurônios. Para cada uma dessas questões, a psiquiatra Juliana Belo Diniz tem uma crítica ponderada – e baseada em evidências científicas.
E é nas lacunas de conhecimento, nos modismos, nas feridas e nas distorções da prática clínica que a médica e psicoterapeuta toca em seu primeiro livro, O Que Os Psiquiatras Não Te Contam, recém-publicado pela Editora Fósforo.
Doutora em psiquiatria pela USP, a especialista coloca novas ideias e pontos de vista no debate sobre os problemas de saúde mental, destacando o impacto dos aspectos sociais, comportamentais e ambientais na eclosão dessas condições e discutindo até que ponto as medicações e a terapia pela fala podem resolvê-las.
Com a palavra, Juliana Belo Diniz.
Vivemos um autêntico aumento no diagnóstico de transtornos psiquiátricos?
A psiquiatria cria o vocabulário que pode ser usado para descrever o sofrimento psíquico, mas os nossos diagnósticos adquirem vida própria e podem ser usados de forma que não mais correspondem a como eles foram originalmente criados. Um exemplo mais antiquado é a compreensão em torno do que entendemos como sintomas de ansiedade. A timidez, por exemplo, não era considerada um sintoma, mas sim uma característica (como ser loiro ou moreno), até descobrirmos remédios capazes de aliviar a ansiedade fóbica e ajudar alguns tímidos a se sentirem mais seguros. Timidez virou fobia social e depois ansiedade social.
Esse fenômeno também afetou outras condições, como autismo e TDAH?
O diagnóstico de autismo foi apropriado por movimentos da sociedade civil que passaram a demandar uma revisão mais ampla do significado desse termo. Na esteira desse movimento, alguns psiquiatras e neurocientistas modificaram o discurso em torno do diagnóstico, dando razão aos movimentos sociais e aumentando a frequência com que esses diagnósticos são feitos mesmo que a frequência de traços autistas não tenha efetivamente aumentado na população.
O diagnóstico de déficit de atenção, que antes era entendido como algo que melhorava com o amadurecimento, passou a ser usado para diagnosticar adultos claramente sobrecarregados que se queixam de não dar conta de quantidades exorbitantes de tarefas. Nesse caso, tanto psiquiatras, quanto a indústria farmacêutica e a sociedade civil, abraçaram a causa sem pestanejar, acreditando ter as respostas para demandas desumanas de produtividade que caracterizam os regimes de trabalho atuais.
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Por que você questiona que as doenças psiquiátricas não são apenas doenças do cérebro?
A partir da segunda metade do século XX, quando encontramos remédios com efeitos capazes de controlar sintomas como delírios e alucinações e melhorar quadros depressivos e ansiosos, parecia certo que estaríamos próximos de desvendar a origem cerebral dos transtornos psiquiátricos. Afinal, se existiam substâncias químicas que modificavam o funcionamento cerebral e que tratavam sintomas de doenças mentais, como seria possível que a origem desses problemas não estivesse no cérebro? A ideia de que os transtornos psiquiátricos são eminentemente doenças do cérebro é o que eu chamo de “mitologia cerebral”, baseada mais no desejo de encontrar no cérebro as causas das doenças mentais do que no resultado de estudos científicos.
A ideia de ir além da fisiologia não vem de hoje, certo?
Esse movimento sempre andou em paralelo com as buscas por causas biológicas capazes de explicar o sofrimento psíquico. Inclusive, muitos pensadores, como o próprio Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e Karl Jaspers, psiquiatra e filósofo da fenomenologia, defenderam que as causas das doenças mentais eram tanto biológicas quanto de outras naturezas.
Retomar essa discussão sobre a causalidade das doenças mentais é uma forma de reabrir o espaço no discurso psiquiátrico para falar de sintomas depressivos, ansiosos ou de outra ordem, sem precisar, recorrer, necessariamente, a retórica médica e biológica. Isso não representa nenhuma ameaça para a prática psiquiátrica. Mesmo que os sintomas dos transtornos psiquiátricos não sejam o resultado de um distúrbio cerebral eles merecem respeito e cuidado. Portanto, defendo que não é obrigatório aderir à mitologia cerebral para falar de doenças mentais.
Como essa visão impacta na prática da psiquiatria e no atendimento de pessoas em sofrimento?
Do ponto de vista do atendimento clínico, a psiquiatria é uma especialidade médica que tem autorização para prescrever remédios e diversos outros tipos de tratamentos biológicos como as muitas formas de estimulação cerebral, e até neurocirurgia. Além das intervenções biológicas, muitos psiquiatras são também psicoterapeutas ou aplicam dentro da consulta médica conhecimentos que têm origem em alguma das diversas formas de psicoterapia. Já psicologia é uma disciplina bastante ampla que inclui desde áreas sem nenhuma sobreposição com a psiquiatria, como a psicologia organizacional ou escolar, até diversas formas de psicoterapia que também fazem parte da prática psiquiátrica. Em geral, a maior parte dos quadros leves e moderados podem ser tratados só com orientação ou psicoterapia, enquanto casos mais graves e crônicos tendem a requerer alguma intervenção com remédios ou outro tratamento biológico.
A psiquiatria se “medicalizou” demais?
Remédios psiquiátricos são essenciais para aliviar certos sofrimentos psíquicos e, hoje, é inadmissível deixar alguém excluído do convívio social sem acesso aos recursos que podem, dentro de certas limitações, trazer algum alívio. Ao mesmo tempo, os remédios não fazem todo o trabalho sozinhos e tanto psiquiatras quanto pacientes precisam estar implicados no processo de melhora. Os remédios estão incluídos dentro de um planejamento terapêutico muito mais amplo.