A Grande Demissão: HQ explora a complexa relação humana com o trabalho
'Trabalhar e viver', do francês Fabien Toulmé, mescla jornalismo e diário de viagem para mostrar como diferentes culturas lidam com o emprego

Em meados de 2020, quando a pandemia obrigou muita gente a ficar em casa, longe dos escritórios, muitos aproveitaram a pausa forçada para repensar sua relação com o trabalho. Um número significativo de pessoas decidiu largar seus trabalhos em um movimento que ficou conhecido nos Estados Unidos como a Grande Demissão.
Essa transformação na complexa relação humana com o trabalho é o ponto de partida de Trabalhar e Viver, história em quadrinhos escrita e desenhada pelo francês Fabien Toulmé que chega agora ao Brasil pela Nemo.
Toulmé viajou aos Estados Unidos, à Coreia do Sul e às Ilhas Comores, no sul da África, para entender como diferentes culturas se relacionam com o trabalho. O resultado é uma HQ que mescla jornalismo e diário de viagem para tratar de um tema complexo de forma envolvente e leve, mas com bastante profundidade.
Com português perfeito – e sotaque da Paraíba -, o autor conversou com VEJA sobre a produção da narrativa gráfica.
Com a palavra, Fabien Toulmé.
De onde surgiu a ideia de escrever sobre trabalho? Não é um tema tão óbvio para uma história em quadrinhos.
Ele faz parte de uma série, Reflexos do Mundo, em que abordo questões sociológicas características de nossa época que estão mudando. O primeiro foi sobre luta. Enquanto eu fazia o primeiro eu já comecei a pensar no segundo. E comecei olhando para a minha própria carreira. Antes de me tornar quadrinista, eu era engenheiro. Naquela época, eu me questionava porque tinha que trabalhar. Fazia algo de que não gostava. Quando deixei a engenharia e passei a fazer quadrinhos, vi que havia outra maneira de trabalhar. E resolvi abordar essa relação ambivalente que muitas pessoas têm com seus ofícios.
A pandemia provocou grandes mudanças. Foi um período em que as pessoas repensaram suas prioridades?
Antes de viajar para os Estados Unidos e entrevistar as pessoas para o livro, eu tinha uma visão meio errada do que era a Grande Demissão. Achava que foi um momento em que as pessoas pensaram em outras maneiras de viver a vida. Eu achava que dizia respeito a mudanças muito radicais. Como um advogado que virou cozinheiro, coisas assim. Mas na verdade não foi isso. Alguns especialistas dizem que a Grande Demissão, na verdade, foi o Grande Burnout.
Como assim?
A pandemia foi um momento em que as pessoas puderam parar e refletir sobre por que faziam algumas coisas. Muitas gostavam do trabalho, mas tinham uma chefia tóxica, por exemplo. A má organização é capaz de tornar insuportável aquilo de que gostamos. Então, o que me marcou nessa Grande Demissão é que foi um sinal de que, muitas vezes, o trabalho é organizado de uma maneira disfuncional.
Há uma questão geracional envolvida? Para os mais jovens, o trabalho pode não ter a mesma importância que tinha para gerações anteriores?
Essa resposta depende do país. Nos Estados Unidos eu tive uma resposta. Se fizesse as mesmas perguntas em um país mais pobre, as respostas seriam diferentes. Nos EUA, onde há uma certa qualidade de vida, a posição dos jovens me marcou. Muitos disseram que queriam trabalhar com algo que gerasse propósito. E isso envolve ajudar pessoas, ajudar animais ou ajudar o planeta.
De onde surgiu essa necessidade de fazer algo com propósito?
Segundo algumas das pessoas que entrevistei, essa mudança de visão de mundo foi provocada pela crise dos subprimes [a crise das hipotecas nos EUA], em 2007. Antes, havia um caminho claro. A pessoa trabalhava para ter um cargo com responsabilidade e estabilidade. E, assim, podia comprar uma casa e ter uma vida confortável. Então, foi toda uma geração que viu os pais se esforçando para conquistar a casa. E, quando veio a crise dos subprimes, eles perderam a casa e o padrão de vida confortável. Então, muitos passaram a questionar essa coisa de ficar tanto tempo trabalhando em algo que não trazia nada e, assim, perder um tempo precioso de vida.
Apesar do aspecto disfuncional de muitas empresas e organizações, o trabalho continua sendo um elemento fundamental da experiência humana.
Nem sempre foi assim. Eu entrevistei uma socióloga muito importante na França, Dominique Mèda, e ela contou que na Grécia antiga, por exemplo, o trabalho não era valorizado da forma como é hoje. Isso veio mais tarde, especialmente com as Escrituras, que colocaram o trabalho como algo quase sagrado. Hoje, o trabalho ficou tão importante que é impossível dissociá-lo da condição humana.
Usar os quadrinhos como meio para abordar temas complexos facilita essa discussão? Você consegue atingir um público que talvez não se interessasse pelo assunto?
É claro que, quando você coloca imagens em um livro, ele dá menos medo. Porque é inegável que a literatura pode dar certo medo. Especialmente quando estamos abordando questões sociológicas, científicas. Para mim, é uma linguagem natural. Eu tenho mais facilidade para contar uma história com imagens. É um formato que faz muito sentido para essa mistura de jornalismo com diário de viagem que faço.
Se colocar como personagem dá maior liberdade para contar histórias?
Eu nunca quis fazer um livro didático. Não sou um especialista no assunto do trabalho. Então, o que fiz foi escrever um quadrinho para que o leitor pudesse aprender sobre algumas questões junto comigo. Não dá para esgotar esse assunto em 300 páginas. Eu vejo mais como um caminho de reflexão sobre o tema. A minha compreensão sobre o trabalho vai crescendo à medida que eu viajo pelo mundo e converso com pessoas. E penso que o leitor também pode ampliar seu conhecimento e se identificar com algumas situações.
Como é seu ritmo de trabalho?
Geralmente faço um livro por ano. Quando estou na fase de desenho, que é bastante longa e pode tomar oito meses, já começo a pensar no próximo. Eu já havia pesquisado algumas informações sobre o tema. Antes das viagens há um período longo de preparação, de fazer contatos. Depois, viajo para o destino e fico alguns dias. Às vezes cinco, às vezes um pouco mais. Quando volto, preparo o roteiro, que é uma fase rápida, geralmente de uma semana, um pouco mais. Em seguida, faço o storyboard, que é uma versão bem simplificada de como será o quadrinho final. E em seguida vem a fase do desenho.