Se repararmos bem, o ovo é uma perfeição. O poeta João Cabral de Melo Neto reparou bem. “O ovo revela o acabamento / a toda mão que o acaricia / daquelas coisas torneadas / num trabalho de toda a vida”, escreveu, numa ode à sua forma, como se fosse “obra de mil inacabáveis lixas”. Mas a admiração dele pela estética dos ovos certamente não o impedia de quebrá-los, como fazemos todos nós que gostamos de cozinhar. As opções que se abrem são infinitas. Eles podem ser escalfados com casca, como no caso do ovo mollet, ou sem casca e em água quente não fervente, que é como se prepara o ovo poché. Reza a lenda que o rei Charles III pede meia dúzia de ovos escalfados todas as manhãs, retirados da água fervente com trinta segundos de intervalo, para que tenha uma escala de opções à mesa. Quem gosta de toucinho ou presunto talvez prefira os ovos benedict, uma tradição da cozinha americana. Quanto à corriqueira omelete, ela pode ser feita de várias maneiras. Entre a simplicidade de uma receita e o requinte de outra, há modos de preparo para todos os gostos.
“Finalmente o produto obteve permissão para se levantar do banco dos réus com o endosso científico”
O elogio poético ao ovo e as receitas me voltam à mente por conta do Dia Mundial do Ovo, na sexta-feira 14. A proximidade da data coincide com mais uma reabilitação do produto, que finalmente obteve permissão para se levantar do banco dos réus. As suspeitas que pesaram sobre ele durante muitos anos não se sustentaram diante da ausência de provas concretas de que seria prejudicial. A absolvição, com o endosso científico, está sendo recebida pelos apreciadores da boa mesa com a satisfação de quem prepara um caprichado croque-madame.
Lembro que a difamação do ovo começou nos anos 1970, quando a influente Associação Americana do Coração relacionou a ingestão do produto ao aumento da taxa de colesterol para além de um nível considerado saudável. É verdade que, a partir da década seguinte, houve uma revisão desse achado por parte de muitos especialistas, que se basearam em rigorosas pesquisas, segundo as quais o risco é irrelevante. Ainda assim, permaneceu a dúvida sobre sua ligação com doenças cardiovasculares, fazendo com que o ovo descrevesse, desde então, um movimento pendular entre o vilão e o herói.
Hoje, a reputação do ovo está em alta. Um estudo recente de uma universidade espanhola mostrou que pessoas que comem até cinco ovos por semana são mais magras do que as que consomem o produto em quantidades inferiores. Ou seja, depois de concluírem que o ovo não faz mal, os nutricionistas dizem haver fartas evidências de que ele é benéfico à saúde. Considerado o segundo alimento mais completo — atrás do leite materno —, é fonte de proteína, ferro, cálcio e zinco. O ovo também faz bem ao órgão que, ao lado do coração, é considerado um dos mais sensíveis: o bolso. Em tempos de carestia, substitui à altura as carnes, cada vez mais caras. Não é à toa que a produção brasileira de ovos de galinha bate recordes seguidos e se aproxima dos 60 bilhões de unidades por ano. Já não são poucos os estabelecimentos dedicados à venda de ovos. As variações se multiplicam: há ovos gourmet, enriquecidos com ômega 3, orgânicos, caipiras — e até com duas gemas, para quem é dado a excentricidades.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811