São muito comuns as histórias de personalidades que precisaram, por lances do destino, assumir novas formas de exercer sua carreira. Mas não é preciso esperar que um golpe inesperado nos force a desautomatizar a rotina. E, desta vez, nem vou recorrer a evidências científicas. Quero trazer da arte a inspiração da reinvenção — não para enfrentar um eventual infortúnio, mas porque praticá-la nos faz bem. O espanhol Pablo Picasso tem uma frase que ilustra bem tal disposição: “Sempre faço o que não consigo fazer para aprender o que não sei”.
À primeira vista, há um paradoxo na citação. Se ele não consegue fazer, como é que faz? Mas, tirando da citação a camada de exagero retórico, o que ela comunica é: tirar o cérebro da “velocidade de cruzeiro” é decisivo para mantê-lo funcionando bem. Existem sempre pequenos obstáculos cotidianos que nos julgamos incapazes de superar. É deles que fala a frase.
Quem na infância não teve um amigo que, engessado por causa de alguma estripulia, maravilhou os colegas ao escrever com a mão esquerda sendo destro? Os demais o copiavam, enchendo páginas de garranchos incompreensíveis. Que tal, lembrando-se disso, trocar o mouse de lado? É mais complicado do que parece — e por isso é bom para o cérebro. Pois, se nos vemos realizando uma tarefa “com o pé nas costas”, é sinal de que já se perderam os benefícios do refinado esforço envolvido em aprender aquilo. Não é à toa que, quando estamos um pouco repetitivos, presos no rotineiro, nos sentimos também um pouco menos inteligentes.
Mudar o cotidiano tem efeitos importantes. Pode ser procurando se informar sobre um campo de conhecimento fora do domínio habitual, que obrigue a repensar conceitos. Ou então estudando um novo negócio.
Pode, também, ser algo mais trivial, como aprender um jogo e se aprimorar nele — seja de cartas, tabuleiro ou mesmo um dos tantos de palavras e lógica disponíveis. Qualquer atividade que exija diferentes esforços da nossa “torre de controle” é benéfica. O primeiro passo é descobrir o que “não se consegue fazer” para “aprender o que não se sabe”. Mas não só os aprendizados servem de ginástica cerebral.
“Tente algo simples, como inserir variações no seu caminho de todos os dias”
Uma dimensão fundamental do que estava propondo Picasso é o “desaprender”. Ao realizar uma tarefa corriqueira de forma inusual, estamos reprogramando o cérebro. É como olhar o mundo com a curiosidade e o espírito brincalhão de uma criança. Passam-se eras, mas pela rua ainda se vê um menino desafiando outro a andar sem pisar em tal pedra do calçamento, ou descendo escadas de dois em dois (ou mais) degraus. É como o “andar para trás” na esteira ou no parque, que sugeri em outro texto. Tente algo simples, como inserir variações no seu caminho de todos os dias.
Não se trata só de trocar uma informação velha por uma nova, não é simplesmente esquecer como se faz. Desaprender é entender aquela atividade em minúcia para, então, reaprender — exigindo do cérebro o vigor que ele dedica a uma primeira vez. E, se você acha que é tarde para “primeiras vezes”, fecho este texto com outra frase de Picasso, que viveu plenamente até os 91 anos: “Quando dizem que estou velho demais para alguma coisa, na mesma hora tento fazê-la”.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896