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‘Aida’ e o velho normal

A ópera de Verdi nos faz desejar a vida como ela costumava ser

Por Lucilia Diniz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h34 - Publicado em 24 jun 2022, 06h00

Há muita atualidade na ópera Aida, que até recentemente esteve em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, e tive a oportunidade de ver. Composta há 150 anos por Verdi, a obra já seria muito interessante se apenas contasse uma história envolvente, nos remetendo a um passado pouco conhecido. Deixo a crítica musical a quem é do ramo. O que me interessa aqui são alguns aspectos sobre os quais o enredo e a montagem me convidaram a refletir. O espetáculo busca afinidades entre dois mundos apartados pelo tempo e pelo espaço. A guerra colonial do Egito contra a Etiópia serve como pano de fundo do libreto. Hoje, a guerra da Ucrânia, invadida pela Rússia, está nas primeiras páginas dos jornais. São conflitos que impactam corações e mentes, e o foco da trama traz a dimensão humana da guerra.

Como se sabe, a personagem que dá título à ópera é uma princesa etíope presa e escravizada pelo invasor sob o comando de Radamés, por quem ela acaba se apaixonando. É uma situação que opõe afeto a poder. Aida evolui ao longo dos quatro atos. Fragilizada no início, ela se torna uma mulher forte, capaz de lidar com as adversidades do destino e do acaso. O prazer da volta das temporadas de ópera foi reforçado pelas circunstâncias em que a peça foi encenada. Os ensaios estavam concluídos no início de 2020, quando a estreia teve de ser adiada por causa da pandemia. O atraso imprevisto arrastou-se por mais de dois anos. Durante esse longo período, todos nós procuramos maneiras de seguir a vida a partir da perspectiva de uma espécie de plano B, algo que passou a ser chamado de “novo normal”. A ópera nos remete ao velho e bom normal.

“Há esperança de que, em breve, o intervalo em nossa existência imposto pelo vírus pareça algo distante”

A encenação de Bia Lessa foi muito além de respeitar a peça do expoente do romantismo italiano do século XIX. Uma vez abertas as cortinas, despertaram nossa atenção as caixas de papelão fazendo as vezes das pirâmides do Egito. A concepção visual da diretora, com brilhante carreira também como cenógrafa, nos transportou ao norte da África da época de um Canal de Suez recém-inaugurado para o mundo, e indiretamente também ao Brasil de hoje. Não havia espaço para a grandiosidade de montagens anteriores, que recorreram até a elefantes, como uma das mais extravagantes, em Nova York. A solução econômica, elegante e criativa no palco brasileiro — uma adaptação que mantém a essência da proposta original — é condizente com os tempos atuais, que exigem sobriedade.

Muitos projetos culturais também foram pegos no contrapé nos últimos dois anos pandêmicos. Alguns ganharam versões remotas, outros foram abandonados. O que tornou único o caso de Aida é o fato de a montagem ter sido retomada do ponto em que foi interrompida, o que é mais surpreendente quando se leva em conta o porte da produção, envolvendo centenas de pessoas. Há esperança de que, em breve, o intervalo em nossa existência imposto pelo vírus pareça algo tão distante quanto um conflito colonial. Que a estreia tardia de Aida seja o símbolo dessa tão aguardada volta à normalidade — nas artes, no trabalho, no lazer, enfim, na vida.

Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795

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