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A ilusão da verdade

O pior cego é o que pensa que já viu de tudo

Por Lucilia Diniz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h18 - Publicado em 15 mar 2024, 06h00

Botas e mais botas. Muito provavelmente esse será o resultado de uma busca na internet ao perguntar o melhor calçado para fazer o Caminho de Santiago. De diferentes marcas, com o cano mais ou menos alto, novas e resistentes ou surradas e amaciadas — mas sempre botas.

Foi o que os buscadores recomendaram quando, anos atrás, meu marido, Luiz, e eu nos preparamos para nossa caminhada. Pois bem: como descobrimos pela nossa própria experiência, a melhor alternativa para os muitos quilômetros de caminhada diários eram os tênis, com dois pares de meias.

As botas estavam lá, enchendo as telas à exaustão, a um toque dos nossos dedos. Como poderia não ser verdade? E, no entanto, como dizem, “na prática a teoria era outra”. Isso faz pensar sobre como hoje aceitamos respostas prontas, às vezes para nossa confusão.

Nada escapa ao “oráculo eletrônico”. A data de um evento obscuro, a sinopse de uma obra clássica ou a explicação de um teorema complicadíssimo: seja qual for o interesse, as trilhas cibernéticas, bem menos acidentadas que as do norte da Espanha, nos levam a um conhecimento instantâneo.

“Fazer longas investigações não nos isentava de erros, mas dava tempo à dúvida e à reflexão”

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Anos atrás — uma fração de segundo em termos de tempo histórico — era preciso recorrer a enciclopédias, dicionários e especialistas atrás de uma informação. Hoje as respostas vêm em uma fração literal de segundo. E cada vez fica mais fácil. Quando nos limitávamos aos buscadores, tínhamos às vezes de cruzar dados incompletos. Agora, a inteligência artificial nos entrega o que procuramos em textos com começo, meio e fim. Não dá nem para desconfiar — mas deveríamos. Não à toa, até os próprios mecanismos de IA advertem que os conteúdos podem ter imprecisões.

Além do risco de erros, há uma questão mais sutil. Quem acredita que todo o saber vem pela tela do celular acaba deixando de dar valor a um conhecimento menos divulgado, gerado em universidades e outros centros de estudos. Vivi um exemplo disso quando, em um seminário na França, aprendi com o químico francês Hervé This, especialista em gastronomia molecular, sobre a utilidade de resfriar o macarrão para tornar mais lenta a absorção de seus carboidratos.

Naquela época, como hoje, sempre procurei variar minhas fontes de conhecimento. Não fosse por isso, talvez não tivesse me inteirado da produção científica de This, ainda fora do alcance dos mecanismos de busca da internet. Só teria tido essa mesma informação poucos meses atrás, quando li no The New York Times uma reportagem que explicava a “nova” técnica viralizada nas mídias sociais. Fazer longas investigações não nos isentava de erros. Mas dava tempo à dúvida e à reflexão; tempo para digerir a informação. Absorver um conhecimento rápido é parecido com matar a fome comendo fast-food. A satisfação é imediata. Mas os efeitos posteriores nem sempre são benéficos.

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O principal risco, penso eu, é acumularmos certezas inabaláveis. Um dado errôneo, mal-intencionado ou não, pode causar bem mais danos do que as dores ocasionadas por um calçado errado. Por que abriremos os olhos para outras possibilidades quando “tudo indica” que já temos a resposta que procurávamos? O pior cego, hoje, não é o que não quer ver, mas o que pensa que já viu de tudo. Como dizia o filósofo grego Parmênides cinco séculos antes de Cristo, “o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, mas a ilusão da verdade”.

Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884

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