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Claudio Lottenberg

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Mestre e doutor em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp), é presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde e do conselho do Hospital Albert Einstein

Espiritualidade como novo horizonte da prática clínica

Abordagem holística da saúde tem efeitos positivos no enfrentamento de diagnósticos complexos

Por Claudio Lottenberg
16 abr 2025, 14h47

Em fins do primeiro século de nossa era e início do segundo, viveu o poeta romano Juvenal, autor de um verso que atravessaria sua época e chegaria com vigor aos nossos dias: “Orandum est ut sit mens sana in corpore sano“. Segundo ele, os homens em suas orações deveriam pedir aos céus – em vez de poder, beleza, glória militar, eloquência e longevidade – mente sã em corpo são. Hoje, além de reconhecer as claras relações entre a saúde mental e a saúde física, a medicina se volta com grande interesse para a observação de um elemento, que, embora estivesse implícito no verso latino, só começou a receber alguma atenção da ciência na segunda metade do século XX: a espiritualidade. De lá para cá, muitos pesquisadores vêm desenvolvendo estudos nessa área, que mostram que manter uma conexão espiritual, seja ela qual for, pode trazer efeitos extremamente benéficos aos tratamentos.

Nessa perspectiva, que já é adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Conselho Federal de Medicina (CFM), em boa hora, criou a Comissão de Saúde e Espiritualidade, que vai discutir o tema com base em estudos e casos clínicos a fim de consolidar um entendimento que possa servir de orientação para os profissionais de todo o país. Hoje já se sabe que a evolução clínica do paciente pode ser positivamente afetada pela religiosidade, pela fé ou, dito de maneira mais ampla, pela espiritualidade, que é fonte de força, esperança e resiliência.

Apesar de relegada a segundo plano na história da medicina, especialmente com a adoção do modelo biomédico no século XIX, a espiritualidade vem sendo, passo a passo, reconhecida por sua relevância. Durante grande parte do século XX, essa abordagem foi rechaçada por ser considerada subjetiva e incompatível com a prática científica. Essa visão foi superada, mas, ainda hoje, há médicos que resistem a integrar a espiritualidade na prática clínica por receio de que seja confundida com a aceitação de curas milagrosas ou de tratamentos alternativos, sem base na ciência.

É claro que a proposta do CFM não é, em hipótese alguma, pôr em dúvida o conhecimento científico. Seu objetivo é integrar no processo terapêutico a dimensão espiritual, que é parte importante da forma como as pessoas traduzem seu propósito de vida, seus anseios e sua relação com a morte. A intenção do projeto é oferecer a cada paciente suporte ético, apoiado em evidências científicas, respeitando suas crenças e individualidade.

Existem muitos estudos interessantes nessa área. É o caso de pesquisas que observaram o efeito das preces na liberação de neurotransmissores do bem-estar no cérebro, citadas por Rosylane Rocha, coordenadora da Comissão, e de estudos que buscam compreender os processos cerebrais associados à religiosidade e à espiritualidade para avançar no tratamento da dor, do alcoolismo e de dependência química. De modo geral, já se sabe que pacientes envolvidos em práticas espirituais costumam apresentar níveis mais baixos de estresse e de ansiedade, além de serem menos suscetíveis à depressão e de terem recuperação mais rápida.

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Pesquisadores de Harvard chegaram à conclusão de que pessoas que participam de comunidades espirituais, por um lado, têm mais chances de levar uma vida saudável e, por outro, mostram melhor reação a doenças graves. A universidade tem um programa que busca entender como religião e espiritualidade podem aliviar doenças e promover a saúde. A Iniciativa sobre Saúde, Espiritualidade e Religião reúne pesquisadores, médicos e teólogos para estudar a conexão entre corpo, mente e espírito, utilizando métodos científicos rigorosos e promovendo diálogos com comunidades espirituais. A intenção do projeto é criar um modelo integrado de cuidado centrado na pessoa. Seu codiretor, Howard Koh, lembra que, quando a espiritualidade é ignorada, o paciente se sente desconectado do médico e do sistema de saúde.

É importante saber se o paciente tem alguma conexão espiritual ou prática religiosa, pois isso pode influenciar diretamente decisões sobre tratamentos. Algumas religiões, por exemplo, não permitem transfusões de sangue — e essa escolha deve ser respeitada. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu o direito do paciente de recusar um tratamento por motivo de fé, o que também obriga o Estado a oferecer terapias alternativas no SUS. O diálogo com o paciente é essencial em seu processo de cura.

Vale lembrar que mesmo agnósticos e ateus podem beneficiar-se dos efeitos positivos da conexão de natureza emocional. É comum que as pessoas usem a religião para compreender a fé, porque esse é um mecanismo mais fácil de entendimento, mas a fé não precisa estar atrelada a uma religião. Para a OMS, a espiritualidade é um conceito abrangente, que engloba a percepção do indivíduo sobre sua posição na sociedade, com seus valores, objetivos, expectativas e preocupações. Essa relação complexa entre saúde física, estado psicológico, nível de independência, relacionamentos e crenças pessoais constitui a dimensão espiritual. A compreensão de que a vida humana se realiza no corpo, na mente, mas também nas crenças e propósitos, conduz a uma abordagem que transcende a simples cura de uma doença. Na prática, resultados concretos já têm aparecido.

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Pacientes terminais que exercem práticas espirituais ou têm suporte espiritual tendem a utilizar menos intervenções médicas invasivas e a permanecer menos tempo em unidades de terapia intensiva. Como costumam aceitar melhor sua condição, essas pessoas abrem mão de certos tratamentos que apenas prolongam o sofrimento quando já não é possível obter nem cura nem melhor qualidade de vida. Dessa forma, enfrentam com mais serenidade a etapa final da existência, em companhia de seus familiares, evitando o isolamento em um quarto de hospital e, consequentemente, altos custos com internação. A abordagem médica que respeita a dimensão espiritual do paciente, além de ser mais humana e mais eficiente, é menos onerosa para os sistemas de saúde.

Estamos vivendo um momento de grande evolução da medicina, que não só experimenta grande avanço científico e tecnológico como acolhe a abordagem holística da saúde. O cuidado humanizado, que inclui a dimensão espiritual como um complemento terapêutico, promove o bem-estar integral da pessoa, sobretudo no momento delicado em que recebe um diagnóstico que vai alterar a sua vida e a de sua família. Adotar novos horizontes de abordagem da saúde na prática clínica reforça a relação de confiança entre médico e paciente e reafirma a importância de tratar o ser humano em sua totalidade: mens sana in corpore sano – cum spiritu sano.

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