Discriminação racial no país é alta e persistente
Se continuar no mesmo ritmo, Brasil deve levar 96 anos para chegar ao equilíbrio racial, diz estudo
Escrevo há mais de 30 anos sobre temas sociais, como educação, trabalho infantil, violência e pobreza. Invariavelmente, abordo questões de gênero e de raça/etnia que estão por trás das desigualdades. Negros, em especial as mulheres, aparecem, quase sempre, em desvantagem.
Apesar de muitos ainda insistirem em negar, não só existe discriminação racial no Brasil como ela tem sido medida, trazendo à tona uma realidade encoberta pela falsa crença de que vivemos numa democracia racial. Persistente e significativa, a discriminação racial tem perpetuado as desigualdades, um dos principais motivos do nosso atraso.
“Nos últimos 40 anos, o gap racial entre brancos e negros em relação ao mercado de trabalho permaneceu constante”, diz Michael França, doutor em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper (Neri), em entrevista à coluna. O pesquisador chama atenção para o fato de que nesses 40 anos passamos por um processo de redemocratização, tivemos governos de direita e de esquerda e praticamente nada mudou. “Os negros ganham, em média, 14,25% a menos que os trabalhadores brancos com características semelhantes”, afirma. Um número que, segundo ele, reproduz as desigualdades existentes e é retroalimentado por elas.
Michael França também é um dos autores de Números da Discriminação Racial: Desenvolvimento Humano, Equidade e Políticas Públicas (Editora Jandaíra), que organizou junto com Alysson Portella. Publicado recentemente, o livro mostra, com evidências científicas, o tamanho e os impactos da discriminação racial no Brasil. Como diz Iara Rolnik, do Instituto Ibirapitanga, logo nas suas primeiras páginas: “dados não são somente dados. São instrumentos políticos. Conhecer uma realidade é o primeiro passo para incidir sobre ela”. Talvez, por isso, o livro seja tão relevante.
MUITO POUCO A COMEMORAR
Dados não faltam e, de forma geral, temos, segundo Michael França, muito pouco a comemorar. “O debate está mais aberto e, com a democratização do ensino superior, estamos tendo a ascensão de muitos jovens desfavorecidos que estão terminando a faculdade e atingindo algumas posições melhores na sociedade brasileira. São aspectos positivos do cenário racial, mas os avanços param por aqui”, pontua o pesquisador, ressaltando, que a grande massa continua para trás.
Apesar da melhora, devemos levar 32 anos para chegar a um nível de desequilíbrio racial baixo e 96 anos para chegar ao equilíbrio racial. “Se o ritmo atual for mantido, provavelmente, poucos de nós estarão vivos para ver isso acontecer”, afirma.
O cálculo leva em conta o Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer), inspirado no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que mede a qualidade de vida em três dimensões: renda, educação e saúde. Também composto de três dimensões (renda, educação e longevidade), o Ifer varia de -1 até 1. Valores negativos representam o grau de sobrerrepresentação branca e positivos a negra.
Para se ter uma ideia, o componente de educação do índice foi o que mais avançou, passando de -0,60, em 2001, para -0,37, em 2022 (o último publicado). “Apesar dessa melhora, vamos levar 47 anos ou mais para atingir o equilíbrio no ensino superior se a atual tendência for mantida”, calcula Michael França, que é um dos autores do índice, junto com Alysson Portella e Sergio Firpo.
Outro ponto que o pesquisador faz questão de destacar é que, em termos de aprendizado, a diferença entre brancos e negros não está diminuindo e pouco se alterou ao longo da última década.
Mais uma vez, os números escancaram a desigualdade: 61,8% dos brancos completaram, no mínimo, o ciclo básico educacional ante 48,3% de pretos ou pardos, uma diferença de 13,5 pontos percentuais, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), divulgada em março de 2024. Em termos de anos de estudo, a diferença vem diminuindo, mas também continua significativa. Brancos estudam, em média, 10,8 anos e pretos ou pardos, 9,2 anos. Ou seja, 1,6 ano a menos. Em 2016, a diferença era de 2 anos.
Em relação à renda, a situação é muito pior. No ritmo atual, a convergência nessa dimensão demoraria 340 anos para o equilíbrio total.
UMA HISTÓRIA DE EXCLUSÃO
O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), até 1985, os analfabetos não tinham o direito de votar, o que restringia a participação de boa parte da população, em especial dos negros. Uma história de exclusão que tem, como vimos, efeitos até hoje.
Segundo Michael França, para mudar esse enredo, é preciso fomentar diversas políticas públicas. Apenas a transferência de renda e as cotas raciais não são suficientes. “Precisamos impactar em todas as dimensões que aumentem a probabilidade de mobilidade social”, diz ele, citando como exemplo políticas de saúde em geral, saúde reprodutiva, educação, saneamento, taxação de herança e inclusão produtiva. “Construímos uma sociedade altamente estratificada. Precisamos mudar a qualidade da distribuição de renda para conseguir reestruturá-la”, defende o pesquisador.
Estudo recente dos pesquisadores Diogo Britto, Alexandre Fonseca, Paolo Pinotti, Breno Sampaio e Lucas Warwar (2022), citado no livro de Michael, mostra como a inércia do Estado afeta o futuro das próximas gerações. No Brasil, uma criança cujos pais estavam entre os 20% mais pobres têm apenas 2,5% de chances de alcançar na idade adulta o grupo dos 20% mais ricos da sua geração. Um percentual muito baixo se comparado com outros países como Estados Unidos (7,5%), Dinamarca (11,7%) e Canadá (13,4%).
Transformar essa realidade é urgente. Como mostram os números, estamos com décadas de atraso. A redução das desigualdades é meta da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e condição essencial para um desenvolvimento de fato sustentável.
* Jornalista e diretora da Cross Content Comunicação. Há mais de três décadas escreve sobre temas como educação, direitos da infância e da adolescência, direitos da mulher e terceiro setor. Com mais de uma dezena de prêmios nacionais e internacionais, já publicou diversos livros sobre educação, trabalho infantil, violência contra a mulher e direitos humanos.