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Augusto Nunes

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Valentina de Botas: O ministro não mirou Renan, mas o governo

Ah, mas as ruas bradaram “Fora, Renan” neste dia 4. Ora, mas também gritaram “Fora, Dilma” por quase um ano e ela foi posta para fora segundo todos os ritos legais que havia e outros imaginários

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 21h08 - Publicado em 9 dez 2016, 19h14

Entre a bandalheira de Renan Calheiros, que se escondeu debaixo da mesa diretora, e a de Marco Aurélio Mello, que quer depor sozinho o chefe de um poder, preferiria que Ferreira Gullar não tivesse morrido. Talvez Gullar não fosse apenas o último grande poeta brasileiro vivo, mas também o artista mais corajoso nesses tempos em que a covardia de quem está com a vida ganha simula coragem para dissimular voluntarismos demagógicos, impulsos salvacionistas, indignação seletiva ou remunerada, o mais bruto oportunismo ou moralismo persecutório. É a tal pós-verdade: a coisa é porque acho que é e, se não é, pior para a coisa. É tirânico também. Entre a tirania de um cangaceiro e a de um narciso de toga, há os SMD (os sem-mesa-diretora).

Se eu invadir ou depredar um bem alheio, vou presa. Se delinquir em nome de uma causa, o máximo que me acontece é transformar Lindbergh Farias em meu amigo, um castigo que terei feito por merecer. Se quando o camburão chegar, bater o nervosismo de principiante, não me lembrar de uma causa para chamar de minha nem de erguer o punho cerrado, resistir à voz de prisão ou não cumprir uma ordem judicial e sem uma mesa diretora sob a qual me esconder, as coisas se complicarão e desapontarei profundamente minha mãe e minha filha – a pior consequência da minha hipotética carreira criminosa. Somos, os brasileiros de bem, uma nação de SMD e, se isso consola, tais despossuídos não ganham a amizade de Lindbergh Farias. É claro que Renan deveria ter se submetido à lei, por mais insólita que fosse (já chego lá) e, então, recorrer.

Em março, o Supremo Tribunal Federal rejeitou o recurso de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, contra decisão do mesmo STF de dezembro passado que sabotara o rito do impeachment definido legitimamente pela Casa. Foi 9 a 2, Marco Aurélio Mello votou contra o recurso. Na sabotagem daquele dezembro amargo, o ministro Barroso, com uma leitura destrutiva-criativa do regimento interno da Câmara, reinterpretou o impeachment de Collor, decidiu que a Constituição é só um livrinho opcional e determinou que o Senado, antes de julgar o processo eventualmente aprovado na Câmara, deveria decidir se o receberia, enquanto a Constituição diz que a primeira Casa recebe e a segunda julga. Marco Aurélio votou com Barroso.

Então como, depois de responder com liminar um recurso não respondível com liminar afastando Renan Calheiros da presidência do Senado e jogando o país nas mãos do PT repudiado pelas ruas e urnas, grande parte da imprensa diz que Marco Aurélio ouviu as ruas? Ah, mas as ruas bradaram “Fora, Renan” neste dia 4. Ora, mas também gritaram “Fora, Dilma” por quase um ano e ela foi posta para fora segundo todos os ritos legais que havia e outros imaginários (manter os direitos políticos de Janete). A liminar de Marco Aurélio está entre os segundos. Ademais, no dia 4, o governo, que o ministro tentou desestabilizar, foi poupado da justa ira dos brasileiros exaustos. Se ele ouviu as ruas agora, o que teria lhe destampado os ouvidos, moucos em dezembro de 2015 e março de 2016 para as multidões que gritavam pelo impeachment?

Alguns amigos advogados e um muito querido, procurador do MP de São Paulo, me ajudam com os meus escassos conhecimentos sobre leis, mas divergem entre si sobre esse choque entre os dois poderes, a exemplo de dois dos jornalistas que mais respeito: Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo. Como uma SMD e leiga, me aproximo mais da posição do segundo e nem acho que seja uma questão de concordar ou discordar já que me falta repertório técnico, mas estou, como a grande maioria dos brasileiros, exausta dos tiranos seguros o suficiente para serem covardes que, entre os surtos que lhes satisfazem os apetites, não enxergam nem ouvem direito um país com quase 13 milhões de desempregados que precisa de alguma estabilidade para começar de novo a parar de piorar.

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Urge alguma sobriedade, senhores, para a esperança de esperançar. Quem ler o voto de Marco Aurélio, dispensável ser um constitucionalista, basta conhecer orações subordinadas, perceberá que o objeto do voto – a liminar – não é justificado, e sim o mérito, coisa que não estava em questão. Trata-se de uma cilada retórica e o ministro não mirou Renan, mas o governo. Essa gente não tem ideia de onde fica o país e o que ele tem sofrido. Quando Michel Temer afirmou que a prisão de Lula traria instabilidade, ele não contava com a astúcia de Marco Aurélio. Não, a governabilidade (que não é Renan Calheiros, mas o presidente do Congresso dada a pauta a ser votada ali) não está acima da lei, apenas da lei imaginária de Marco Aurélio e das detestáveis aparições oportunistas da Rede de hipócritas de Marina Silva. Nem a criatividade deletéria do ministro ou a imunidade sem limites do senador garantem a estabilidade, e sim o cumprimento da lei, o que inclui prender o jeca. Mais pedagógico e eficaz para combater a corrupção do que as tais 10 medidas, seria prender Lula e denunciar Renan.

Gullar renegou o comunismo, reconheceu o equívoco trágico que foi essa porcaria, afirmou sem relativismos que a turma guerrilheira e terrorista que combateu a ditadura sonhava com outra ditadura, e não com democracia. Mas, no Fantástico da rede Globo, a memória do poeta foi desonrada com o covarde relativismo desonesto de uma reportagem que afirmou “foi comunista, perseguido pelos militares”. E não foi? Foi. Mas isso é só uma parte da história e calar a outra parte mente a história inteira do poeta intelectualmente corajoso e honesto. Nenhuma alusão às duríssimas críticas dele ao comunismo, Cuba e intelectuais que enaltecem ditaduras sob as quais não querem viver. É a pós-verdade segundo a mesma cartilha em que o bandido com causa é manifestante, invasão de escola é ocupação e Marco Aurélio “ouviu as ruas”.

Por volta dos meus 15 anos, já era leitora de poetas, mas foi o sobressalto da leitura de “Poema Sujo” que me ensinou que é preciso trazer poesia nos olhos para ler poesia. Assistindo a trechos da sessão do STF desta tarde, com aqueles discursos de ambos os lados a favor do bem, contra o mal, defendendo a defesa do estado de direito e Rodrigo Janot com o mimimi de sempre sem nunca denunciar o homem-de-11-inquéritos, me perguntava o que falta para que o país descubra que os déspotas, de toga ou do cangaço, dependem mais dos tiranizados do que nós deles. Desconfiando de que o país já sabe e os déspotas sabem que sabemos, daí os surtos repentinos e extremos, fiz minha escolha: fui ler Gullar.

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