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Os proprietários da miséria nacional

A massa miserável precisa da garantia da propriedade para apropriar-se do resultado do seu esforço e sair da miséria

Por Fernão Lara Mesquita
Atualizado em 30 jul 2020, 19h41 - Publicado em 4 jun 2019, 13h06

Fernão Lara Mesquita (publicado no Vespeiro)

A crise é generalizada porque é uma crise dos fundamentos. O País perdeu a capacidade de identificar as referências básicas em relação às quais se posicionar. Uma das mais básicas dessas referências básicas é o direito de propriedade. A brasileira, como toda sociedade deseducada, tem apenas a si mesma como referência. Age como se o mundo tivesse começado com ela. E, como o Brasil começou com apenas 13 proprietários, a defesa da propriedade privada nunca foi popular por aqui.

Os 13 proprietários do Brasil eram, porém, apenas os prepostos do proprietário único de Portugal e seu império ultramarino. Nas monarquias absolutistas “soberania” e “propriedade” (ou patrimônio) eram dois nomes da mesma coisa ou, melhor, da mesma pessoa. Tudo pertencia ao rei. O governante despótico não tinha de ir a uma assembleia de representantes do povo para pedir dinheiro. A sociedade inteira é que tinha de ir a ele para suplicar que lhe deixasse as migalhas do pão que ela amassava.

A única exceção foi o rei inglês. Não é por questão de gosto que na Inglaterra os castelos são de pedra e madeira e os franceses, espanhóis, russos ou portugueses são de ouro. Numa luta que vai fazer mil anos desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês foi mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de sua majestade por recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de cada indivíduo da plebe sobre o resultado do seu trabalho contra o poder do rei e seus “nobres” de tomá-lo para si, até que, a partir de 1680, o Parlamento ganhasse a supremacia de que desfruta até hoje.

A propriedade e a liberdade individuais emergiram, portanto, de uma luta travada entre um corpo de representantes do povo, que só tinha de seu a sua capacidade de trabalho, e um déspota. Onde o rei ou seu equivalente foram compelidos a depender do Parlamento ou seu equivalente como fonte de alimentação da sua renda, a propriedade individual foi ganhando proteção cada vez mas sólida e a liberdade floresceu. Onde aconteceu o contrário o resultado foi o inverso.

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A propriedade dos meios de produção onde esse tipo de processo histórico ocorreu não é um privilégio, ao contrário, é uma responsabilidade que atrela o seu titular ao processo de produção. Os proprietários sem proteção de “reis” são compelidos pelo mercado a voltar a sua propriedade para a melhor satisfação dos consumidores, e os que forem lentos ou ineptos nesse processo serão penalizados por prejuízos e, se não aprenderem a lição, pela perda dessa propriedade.

“Mas é precisamente dessa escravidão que é preciso libertar o homem”, dirá um francês ou um aluno dos franceses da USP dos tempos em que ela existia como universidade. A alternativa é a privilegiatura, esse nosso feudalismo remasterizado, lembrará este escriba. Não há terceira via…

Hernando de Soto, no seu livro clássico O mistério do Capital: por que o capitalismo triunfou no Ocidente e falhou nos outros lugares, deixou a teoria de lado e foi a campo fazer medições do valor da obra visível dos contingentes mais pobres das populações do Cairo, Lima, Manila, Cidade do México e Port-au-Prince (Haiti). Os resultados foram surpreendentes. No Haiti o valor dos imóveis rurais e urbanos ocupados por essa população e as construções neles existentes montaram a US$ 5,2 bilhões em valores de 1995, quatro vezes mais que os bens de todas as empresas operando legalmente no país, nove vezes o valor de todas as propriedades do governo e 158 vezes o valor de todos os investimentos estrangeiros diretos feitos no Haiti em toda a sua história. No Peru, os US$ 74 bilhões medidos equivaliam a cinco vezes o valor de todas as empresas com ações na bolsa de Lima, 11 vezes o de todas as empresas privatizáveis do governo peruano, 14 vezes mais que todo o investimento estrangeiro feito no país ao longo de toda a sua história. Cairo, Cidade do México e Manila deram resultados ainda mais astronômicos. O livro registra uma menção ao Brasil, cuja indústria imobiliária passava por uma forte crise naquele momento, mas as vendas de cimento batiam recordes todos os meses. O “favelão nacional”, hoje de dimensão continental, estava em plena construção…

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A conclusão é que não são a disponibilidade de recursos naturais, o espírito empreendedor ou a quantidade de trabalho investido que explicam a diferença da riqueza das nações, mas sim o grau de proteção da propriedade privada de que cada uma desfruta. Onde ela é garantida, a obra de cada cidadão, rico ou pobre, menor ou maior, é “capital vivo” que serve, como no caso da residência de cada cidadão nos EUA, como garantia dos seus próximos investimentos, que, por sua vez, garantirão os desenvolvimentos seguintes. Com o tempo, desenvolve-se uma padronização de linguagem e regulamentação e todos os bens ganham uma segunda dimensão “de representação” que pode ser transacionada sem as limitações de “portabilidade” do bem físico, enquanto nos países onde essas residências são favelas erguidas em terrenos que ninguém sabe de quem são ou serão a mesma quantidade de esforço investido transforma-se apenas em “capital morto”, cuja propriedade não está garantida nem mesmo para quem a construiu pessoalmente, e, portanto, não se desdobra em fruto nenhum.

A massa miserável precisa, portanto, da garantia da propriedade para apropriar-se do resultado do seu esforço e sair da miséria. A questão é identificar a ferramenta política capaz de transferir o poder das mãos de quem aparelha a força do Estado para apropriar-se do resultado do trabalho alheio para as de quem precisa da proteção do Estado contra esse tipo ancestral de rapinagem. E, como o nosso Poder Judiciário demonstra todos os dias com “autos de fé” contra os hereges do “sistema” ou simplesmente pela força dos seus holerites, manda no Estado quem tem o poder de contratar e, principalmente, de “demitir” políticos e funcionários públicos.

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