O democrata radical
PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA AUGUSTO NUNES Neto do Júlio que em 1891 fundou a dinastia, filho do Júlio que entre 1927 e 1969 consolidou o império e lhe moldou a alma, irmão do Júlio que até a morte, em 1996, liderou a luta pela preservação das fronteiras em perigo, o jornalista Ruy Mesquita era um príncipe já septuagenário quando os […]
PUBLICADO NA EDIÇÃO DE VEJA DESTA SEMANA
AUGUSTO NUNES
Neto do Júlio que em 1891 fundou a dinastia, filho do Júlio que entre 1927 e 1969 consolidou o império e lhe moldou a alma, irmão do Júlio que até a morte, em 1996, liderou a luta pela preservação das fronteiras em perigo, o jornalista Ruy Mesquita era um príncipe já septuagenário quando os conselheiros do reino decidiram revogar o direito de primogenitura para entregar-lhe a sala do trono ─ disfarçada de gabinete do diretor responsável do jornal O Estado de S. Paulo. Nos trinta anos anteriores, o filho do meio do mítico doutor Julinho tivera de contentar-se com o Jornal da Tarde, território muito bonito e pouco rentável doado pelo pai ao jovem redator que esbanjara talento na editoria internacional do Estadão. A alteração da rota deu certo. Até morrer de câncer neste 21 de maio, aos 88 anos, Ruy Mesquita cansou-se de provar que nasceu para ser Júlio IV.
Ele sempre soube disso, atestou a entrevista concedida a Carlos Maranhão, de VEJA SÃO PAULO, logo depois da coroação consumada em 18 de agosto de 1996. “Nada de fundamental vai mudar, pois nossa linha e nossos princípios permanecem os mesmos”, avisou. “O que muda é o estilo. Todo grande jornal reflete o estilo de quem realmente manda nele.” Na forma, os editoriais (“notas”, insistem os Mesquita há mais de 100 anos) tornaram-se ligeiramente menos sisudos. Foram aposentados, por exemplo, arcaísmos que já eram grisalhos na corte de dom João VI. E sumiram certos sintomas de arrogância retórica, como o “Estamos à vontade para manifestar nossa opinião sobre…”, que abriu incontáveis vezes o texto publicado no alto da página 3. Mas o conteúdo seguiu intocado. E o jornal continuou à vontade para manifestar-se sobre qualquer assunto ─ da guerra do Afeganistão a uma briga de gangues ─ amparado em certezas que atravessaram incólumes o século das grandes transformações.
Durante dezessete anos, armado de uma Olivetti que resistiu bravamente ao advento da era da informática, o doutor Ruy redigiu quase todos os dias a fala do trono ─ como se referem os súditos da redação ao editorial principal, que todo Mesquita aprende ainda na infância a chamar de “primeira nota”. Conjugados, os milhares de parágrafos comprovam que, como os antecessores, Ruy Mesquita também foi poupado das coceiras da dúvida. Se alguma ousasse rondá-lo, bastava recordar os ensinamentos do pai e retomar o caminho percorrido sem desvios há bem mais que 100 anos. “Fundado por abolicionistas e republicanos, desde seus tempos iniciais, quando tinha no cabeçalho o título A Província de São Paulo“, reiterou em 1998, “este diário nunca abandonou a trincheira da guerra pelos princípios democráticos, que se baseiam no primado da liberdade de agir, empreender, trabalhar, se reunir e se manifestar”.
Formulada pelo homem de pensamento, essa declaração de amor à democracia foi reafirmada pelo homem de ação sempre que as circunstâncias exigiram que combatesse além do campo das palavras. Em 1964, convencido de que o estado de direito estava ameaçado pela ofensiva esquerdista, Ruy Mesquita juntou-se aos conspiradores que articularam o golpe militar com a mesma determinação exibida pelo democrata radical na oposição aos generais que, com a decretação do Ato Institucional n° 5, proclamaram a ditadura escancarada e precipitaram a ruptura com o templo do liberalismo clássico. Na década de 70, nos momentos mais sombrios do hiato liberticida, o cinquentão que a poliomielite forçara a andar até os 8 anos com a ajuda de aparelhos escoltou numerosos jornalistas perseguidos pela polícia política. Depois de comunicar aos carcereiros que se haviam tornado, a partir daquele instante, responsáveis pela integridade física do prisioneiro, voltava à sede do império para exigir que fosse libertado.
Na edição que homenageou o valente defensor da liberdade morto aos 88 anos, havia apenas o cavaleiro com a trombeta, cercado de branco por todos os lados, no espaço reservado à fala do trono, com uma moldura preta que evocava cartões de luto. Nada poderia retratar tão nitidamente a paisagem redesenhada pela ausência. Desde que se intensificaram as dificuldades financeiras, que já afetavam a empresa quando substituiu o irmão Júlio de Mesquita Neto, o doutor Ruy ali se entrincheirou. Sem paciência para lidar com questões administrativas, escreveu como nunca ─ em todos os sentidos. Se houver um Júlio V, decididamente não será tão brilhante quanto o grande combatente que partiu.