No coração do poder
A saga das primeiras-damas, invariavelmente expostas a tempestades republicanas que não provocaram, é um capítulo fascinante da história brasileira
Publicado na edição impressa de VEJA
Nenhuma alteração no projeto da Nova Previdência foi acolhida por Jair Bolsonaro com tanto entusiasmo quanto a supressão do tópico segundo o qual deficientes físicos e intelectuais deixariam de receber o benefício da pensão integral depois da morte dos pais. Muito mais que a sensatez da mudança pesou a identidade da autora: “Pedidos da primeira-dama são irrecusáveis e inadiáveis”, decretou o marido de Michelle. A voluntariosa mulher do presidente da República mostrou que não seria uma figura decorativa já no dia da posse, quando esbanjou fluência na Língua Brasileira de Sinais (Libras) ao discursar — antes do primeiro pronunciamento do novo chefe de governo — no parlatório do Palácio do Planalto. A reivindicação encampada por Bolsonaro incluiu-a no diminuto grupo das primeiras-damas que ultrapassaram (com sucesso) o campo de ação demarcado por uma das poucas frases declamadas em público pela paulista Eloá do Valle Quadros: “Política é coisa para os homens”, conformou-se a mulher de Jânio Quadros. A maioria das quinze antecessoras da brasiliense Michelle nunca foi além de tais fronteiras. Todas permaneceram expostas a tempestades republicanas que não provocaram. E algumas descobriram tarde demais que, no Brasil, o casamento com um futuro presidente raramente chega a um final feliz.
As trajetórias desenhadas pelas gaúchas Darcy Sarmanho Vargas e Maria Thereza Fontella Goulart informam que a distância entre o sonho e o pesadelo pode ser medida em mais de duas décadas ou menos de dez anos. A mulher de Getúlio Vargas teve tempo para consolidar o modelo oficial: primeira-dama se ocupa de programas sociais. Entre 1930 e 1945, e depois entre 1951 e 1954, Darcy foi incumbida pelo marido de dividir-se entre a administração dos assuntos domésticos e a gestão de entidades como a Legião Brasileira de Assistência ou a Casa do Pequeno Jornaleiro (casada com Michel Temer, a penúltima integrante da linhagem trabalhou bem menos que a fundadora: liberada de preocupações com pequenos jornaleiros, a bonita paulista Marcela pôde dedicar-se exclusivamente ao pequeno Michelzinho). As atividades cotidianas fizeram de Darcy uma testemunha privilegiada e vítima sem culpa de um dos períodos mais tempestuosos da história, que incluíram a deposição do ditador que chefiou o Estado Novo e o suicídio do presidente democraticamente eleito.
A Mulher Vestida de Silêncio (Editora Record), livro do jornalista Wagner William que acaba de resgatar a saga da viúva de João Goulart, prova que o percurso entre o céu e o inferno, cronometrado pelo relógio da História, às vezes dura um punhado de segundos. Maria Thereza foi a mais jovem, linda e injustiçada das primeiras-damas do Brasil. Tinha 15 anos quando virou namorada do conterrâneo de São Borja que, a caminho dos 40, já fora ministro do Trabalho do governo Vargas e era forte candidato a herdeiro político do líder morto. Ainda era adolescente quando se casou com o vice-presidente da República e acabara de passar dos 20 quando a renúncia de Jânio Quadros a transformou em primeira-dama. O rosto anguloso e tristonho de miss no último desfile viralizou na capa de revistas, promoveu-a a rival de Jacqueline Kennedy e fez suspirar dignitários estrangeiros (o ditador iugoslavo Josip Broz Tito derramou-se em palavrórios tão calorosos que o constrangido tradutor foi obrigado a suprimi-los na versão em português). Tanta beleza, acentuada pelos vestidos do costureiro Dener Pamplona de Abreu, favoreceu o bombardeio de rumores sobre casos de adultério que só aconteceram no imaginário da CIA. Maria Thereza nem chegara aos 30 quando partiu para o exílio com o marido deposto.
Na madrugada de 2 de abril de 1964, militares invadiram a Granja do Torto, onde vivia em Brasília, ordenaram-lhe que juntasse o que cabia numa mala e a embarcaram no avião da FAB que a depositou em Porto Alegre. “Não sei o que foi feito dos meus vestidos, dos objetos pessoais, das minhas coisas”, lastima Maria Thereza. Ela cruzou a fronteira sem saber do paradeiro do marido, que reencontraria dias depois no Uruguai. Só no exílio soube da boataria infame que tentou reduzi-la a uma aventureira vulgar, que iludia um homem incapaz de governar o próprio casamento. Ironicamente, Jango ignorou sistematicamente o apelo que Maria Thereza formulou ainda nos tempos de noiva e repetiu até as vésperas da viuvez, consumada em 1976: ela só queria que o marido deixasse de ser mulherengo.
Esse traço comportamental foi decerto a maior semelhança entre João Goulart e Jânio Quadros. A diferença é que o sul-mato-grossense de Campo Grande amava fantasiar-se de marido exemplar. “Eloá manda em mim”, jurava em público o homem que, em particular, jamais perdeu chance alguma de justificar a fama de priápico. Nesse aspecto, como confirmam anotações nos diários de Juscelino Kubitschek e Getúlio Vargas, Jânio manteve a tradição das aventuras extraconjugais materializadas com a prudência possível pelos dois antecessores. A gaúcha Darcy, com discrição de mineira, reagia com longos períodos de mudez à descoberta de furtivas incursões do marido por alcovas cujo endereço figurava entre os segredos de Estado. A mineira Sarah, com a impulsividade de uma gaúcha, explodia em bíblicos acessos de cólera, sobretudo depois que soube da paixão de JK pela socialite Lúcia Pedroso.
Tudo somado, a única primeira-dama poupada de surtos de ciúme entre 1930 e 1964 foi Carmela Telles. Ao casar-se com o tenente Eurico Gaspar Dutra, devoto de Santo Antônio, aquela viúva de 30 anos era mãe de dois filhos e tinha na cabeça uma ideia fixa que, além de bem mais audaciosa que a mudança na Previdência conquistada por Michelle Bolsonaro, rimava com o apelido que a canonizou em vida: Dona Santinha não descansaria enquanto não fossem fechados todos os cassinos no Brasil. O duro golpe na jogatina, decretado em abril de 1946 pelo presidente Dutra, foi o desfecho da conspiração engrossada pelo bando de autoridades eclesiásticas que visitavam com tamanha frequência o Palácio Guanabara que a residência oficial do chefe de governo, governada por Dona Santinha, ficou com cara de palácio episcopal.
Aberto pelo viúvo Humberto de Alencar Castello Branco, o ciclo dos generais-presidentes ressuscitou a figura da primeira-dama em 1967, com a posse conjunta de Arthur e Iolanda Costa e Silva. A paranaense falante, extrovertida e saliente tratou de substituir conversas com gente fardada pelo convívio com ricaços ansiosos por aproximar-se do marido poderoso. E explorou esse filão com a objetividade de quem parecia ter adivinhado que a festa iniciada em março de 1967 seria bruscamente encerrada pelo derrame que surpreendeu o marido em 28 de agosto de 1969. Nesses dois anos e meio, numerosos empresários e políticos aprenderam que a tramitação de qualquer pedido ao chefe do Executivo era encurtada por um colar, uma pulseira ou um par de brincos. Essa via rápida para o Planalto foi obstruída pelas também gaúchas Scylla Médici e Lucy Geisel, uma soma de duas introversões que resultou em dez anos de silêncio.
O barulho recomeçou em 1979 com a chegada aos palácios presidenciais do casal João Baptista e Dulce Figueiredo. Também para esquecer as escapadas noturnas do marido, que driblava o esquema de segurança cavalgando motocicletas, a paulista Dulce transformava em asas as imensas sobrancelhas postiças e voava para o Rio. Ele foi o único presidente que conseguiu produzir um filho fora do casamento enquanto tentava governar o país. Ela comemorou dançando numa boate com o ator Omar Sharif as compras milionárias que fizera à tarde sem pagar um centavo. Que comerciante deixaria de presentear a primeira-dama com um traje ou uma joia que, apesar de encantada com a ideia, ela só não levara porque o preço era alto demais?
As diferenças entre as personagens que se seguiram a Dulce Figueiredo atestam que não há uma receita de primeira-dama. Marly Sarney ficou cinco anos no cargo sem que a alma e a cabeça saíssem do Maranhão. Mulher do carioca Fernando Collor, que via no Brasil uma versão agigantada de Alagoas, Rosane Malta transformou a Casa da Dinda, onde morou em Brasília, numa extensão da Canapi em que nascera, e alternou contrafações de lua de mel com brigas conjugais suficientemente ferozes para assustar o mais temível cangaceiro. A antropóloga Ruth Cardoso foi a única da estirpe com profissão definida, luz própria e mente brilhante, singularidades que explicam a rejeição do título que lhe parecia depreciativo. “Primeira-dama é uma caricatura do original americano, esse cargo não existe”, ensinou a admirável paulista que concebeu o impressionante conjunto de ações enfeixadas no programa Comunidade Solidária. A marcha da civilização foi interrompida pela instalação da paulista Marisa Letícia Lula da Silva numa sala no Palácio do Planalto. Nos oito anos seguintes, de costas para programas sociais, sobrou-lhe tempo para entrar sem bater no gabinete presidencial e ordenar ao marido que fosse mais cedo para casa, tornar-se campeã de milhagem no Aerolula, desfigurar o jardim do Alvorada com uma estrela vermelha feita de sálvias, propor a nomeação de Ricardo Lewandowski para o Supremo Tribunal Federal e escolher o sítio e o apartamento que o presidente em fim de mandato ganharia dos empreiteiros agradecidos.
É cedo para saber o que o destino reserva a Michelle Bolsonaro. De todo modo, não custa sugerir-lhe desde já que se mire no exemplo de Ruth Cardoso. A mulher de Fernando Henrique Cardoso nem precisou pedir ao marido que fizesse algo. Bastou que FHC a deixasse agir. Michelle não será necessariamente venturosa caso aceite o conselho. Mas ajudará a tornar o Brasil menos infeliz.