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Ministro inocenta a juíza que prendeu a garota no Pará

L.A.B. foi estuprada durante 26 dias por um bando de machos. Na história de horror que aconteceu em Abaetetuba, a única culpada continua a ser a vítima

Por Branca Nunes Atualizado em 4 jun 2024, 20h35 - Publicado em 19 jan 2017, 17h44

Em outubro de 2016, os brasileiros se supreenderam com a notícia de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demorou 9 anos para punir a juíza Clarice Maria de Andrade por manter a menor L.A.B. presa por 26 dias numa cela masculina em Abaetetuba, no Pará. Espantaram-se ainda mais com a informação de que, embora afastada de suas funções pelos dois anos seguintes, a magistrada continuaria embolsando normalmente o salário. Nesta quarta-feira, novo assombro. O ministro Marco Aurélio Mello suspendeu a decisão do CNJ. Assinada em dezembro, só ontem a a liminar foi publicada.

Aposentada compulsoriamente pelo CNJ em 20 de abril de 2010, Clarice voltou à ativa em 14 de junho de 2012, quando os ministros do STF anularam a decisão por considerá-la “excessiva”. Relator deste acórdão, Marco Aurélio determinou na época que, ao julgar novamente a conduta da juíza, o CNJ deveria analisar apenas se Clarice praticou falsidade ideológica na assinatura de um documento e não se agiu com negligência ou dolo.

“O Pleno, ao julgar o mandado de segurança no 28.816, do qual fui redator do acórdão (…) determinou o retorno do processo ao Conselho para pronunciamento quanto à outra imputação – a de falsidade ideological”, escreveu Marco Aurélio em bom jurisdiquês, na decisão publicada nesta quarta. “O exame da decisão formalizada depois da anulação, pelo Tribunal (…) revela o desatendimento das balizas assentadas no voto que proferi no mandado de segurança anterio. Apesar de consignar, no ato atacado, o pronunciamento do Supremo referente ao afastamento de qualquer responsabilidade alusiva à custódia da menor, o Conselho, em aparente contradição, imputou à magistrada a prática de conduta desidiosa relacionada ao evento, a embasar a determinação da sanção de disponibilidade”.

Tradução: a magistrada foi inocentada do crime de manter uma menina de 15 anos, 38 quilos e 1m50 numa cela lotada de machos, que a torturaram e estupraram por quase quatro semanas pelo menos cinco vezes por dia. Mas talvez seja culpada por ter rasurado uma data no ofício sobre o caso expedido à Corregedoria de Justiça.

Em 2013, quando Clarice foi nomeada juíza titular da comarca de Ananindeua, a coluna publicou uma reportagem com o título “Os algozes da menina estuprada na cadeia do Pará estão livres. Ela desapareceu” (leia abaixo). O texto reconstitui a trajetória dos principais personagens do episódio. Um novo capítulo acaba de ser escrito. Nessa história de horror, a única culpada continua a ser a vítima.

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Os algozes da menina estuprada na cadeia do Pará estão livres. Ela desapareceu

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BRANCA NUNES

Em 21 de outubro de 2007, a menor L.A.B. foi presa em Abaetetuba, no Pará, sob a acusação de tentar furtar um telefone celular. Tinha 15 anos, menos de 40 quilos e um metro e meio de altura. Levada para a delegacia da cidade de 130 mil habitantes, a quase 100 quilômetros de Belém, passou os 26 dias seguintes numa cela ocupada por mais de 20 homens. Durante todo o tempo, o bando de machos serviu-se da única fêmea disponível. Estuprada incontáveis vezes, teve cigarros apagados em seu corpo e as plantas dos pés queimadas enquanto procurava dormir. Alguns detentos, aflitos com as cenas repulsivas, apelaram aos carcereiros para que interrompessem o calvário. Os policiais preferiram cortar o cabelo da adolescente com uma faca para camuflar a aparência feminina. A rotina de cinco ou seis relações sexuais diárias foi suspensa apenas nos três domingos reservados a visitas conjugais. O tormento só acabou com a intervenção do conselho tutelar, alertado por uma denúncia anônima.

De tão escabrosos, os fatos resumidos no parágrafo acima parecem extraídos de um filme de ficção. Mas o episódio aconteceu. E a realidade foi ainda mais apavorante.

Naquele 21 de outubro de 2007, um domingo, L.A.B. foi flagrada por Mayko Deyvison de Lima Santos tentando furtar um aparelho celular, algumas roupas e uma corrente de prata pertencentes ao dono da casa. Eram 9 horas da manhã. Depois de trancá-la num banheiro, Mayko ligou para um tio, Adilson Pires de Lima, e para os amigos Sérgio Teixeira da Silva e Francisco Carlos Fagundes Campos. Os três são investigadores de polícia.

Assim que chegou ao local do crime, Adilson se apresentou com um soco no estômago de L.A.B.. A arma colocada dentro da boca encerrou a primeira etapa do calvário. Encaminhada à delegacia, foi recepcionada por Sérgio teixeira com um chute nas costas.

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(Era a quarta vez em menos de quatro meses que a adolescente entrava naquele lugar. Em 24 de junho, L.A.B. havia sido detida por tentativa de furto e liberada depois de pagar a fiança de R$ 180. Em 14 de setembro, foi presa por furto. O alvará de soltura, expedido em 18 de setembro, tem a assinatura da juíza Clarice Maria de Andrade. Não se sabe onde L.A.B. ficou por 72 horas. Nas duas ocasiões, alterou o sobrenome ─ para “da Silva Prestes” ─ e também a idade: afirmou ter 24 e 19 anos. Existe outro inquérito por furto aberto em 3 de julho.)

A história que teve início em 21 de outubro começou a percorrer descaminhos muito mais perturbadores quando a delegada Flávia Verônica Monteiro Pereira resolveu trancafiar L.A.B. ─ que nem precisaria de documentos para provar a menoridade denunciada aos gritos pelo físico ─ na jaula atulhada de machos.

Flávia foi a primeira mulher a cruzar o caminho da menina de 15 anos.

(A atitude da delegada não chega a ser surpreendente nos grotões do Brasil – muito menos nas lonjuras do Pará. No relatório da CPI do Sistema Carcerário, publicado em 2009, delegados, promotores, agentes penitenciários e juízes confirmaram que “quando não tem onde prender mulher, a gente coloca com os homens mesmo”. Ao vistoriar prisões paraenses, integrantes da CPI localizaram dois casos semelhantes ao de L.A.B.. No primeiro, uma presa engravidou depois de cinco meses numa cela com 38 homens. Noutro, a detenta teve dois filhos ao fim de temporadas distintas na cadeia. A quantidade de parceiros impede a identificação dos pais biológicos.)

Se não engravidou, L.A.B. teve sorte. Logo na primeira noite, foi atacada por Beto Júnior Castro da Conceição. Diante da resistência da presa, ele a levou para o banheiro e ali a estuprou. “A vítima gritou bastante, porém, como neste ambiente prevalece a lei do silêncio e os próprios presos tinham medo deste acusado, nada fizeram”, resume a denúncia do Ministério Público, à qual teve acesso o site de VEJA.

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O segundo a saciar-se foi Rodinei Leal Ferreira, vulgo Cão. Como a adolescente seguia resistindo, os detentos resolveram confiscar-lhe a comida, que só liberavam mediante o que chamam de “empanada”: a vítima estende um pano no chão e faz sexo em troca de alimento, dinheiro ou material de limpeza.

Enquanto permaneceu no cárcere, L.A.B. sofreu lesões corporais, teve o corpo queimado com cigarros e isqueiros durante o sono e foi constantemente coagida a ficar longe das grades para não ser vista. Por causa da alta rotatividade, ela só conseguiu identificar Beto Júnior e Rodinei Leal, o Cão. A dupla, hoje no Centro de Recuperação Regional de Abaetetuba, foi condenada a 10 anos e 8 meses por estupro e atentado violento ao pudor contra a ex-companheira de cela.

(Beto Júnior também cumpre pena por dois crimes de roubo qualificado. O prontuário de Rodinei Leal inclui uma condenação por tentativa de roubo e outra por roubo qualificado.)


Cela em que L.A.B. passou 26 dias

Em 23 de outubro, dois dias depois da captura, Clarice Maria de Andrade – a mesma juíza que subscreveu o alvará de soltura de L.A.B. em 18 de setembro – assinou o auto de prisão em flagrante. A magistrada sabia que não existem celas só para mulheres na delegacia. Mas não quis saber onde L.A.B. ficara alojada.

Clarice foi a segunda mulher a cruzar o caminho da menina de 15 anos.

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(“Se um juiz mandar soltar todas as pessoas que estejam presas em situação degradante no Brasil não sobrará ninguém atrás das grades”, avisa Emiliano Alves Aguiar, advogado de Clarice. “As cadeias estão superlotadas. Não há condições mínimas de salubridade para homens e mulheres”.)

Em 5 de novembro de 2007, 14 dias depois do início do drama, Clarice recebeu um ofício “em caráter de urgência” assinado por Antonio Fernando Botelho da Cunha, superintendente regional do Tribunal de Justiça do Pará. O documento determinava a transferência de L.A.B. para Belém, “uma vez que não possuímos cela para o abrigo de mulheres, estando a mesma custodiada juntamente com outros detentos, correndo risco de sofrer todo e qualquer tipo de violência”.

A juíza repassou o pedido para Graciliano Chaves da Mota, diretor da Secretaria da 3ª Vara de Abaetetuba, que assessorava a doutora. Embora tenha garantido à magistrada que a solicitação havia sido encaminhada por fax em 8 de novembro, o diretor só a enviou 12 dias depois, quando L.A.B. já estava em liberdade e o caso começava a chamar a atenção da imprensa. Nesse período, Clarice não procurou saber se o diretor cumprira a ordem que lhe dera.

O episódio ganhou repercussão nacional depois da interferência do conselho tutelar. Alertada para a presença de uma menina de 15 anos na cela masculina da cidade, a conselheira Diva de Jesus Negrão Andrade correu para a delegacia levando a certidão de nascimento de L.A.B.. Na frente do delegado Antônio Fernando Cunha, a adolescente não só reconheceu a menoridade, como confirmou a denúncia de que estava sendo abusada sexualmente pelos outros presos.

As evidências não foram suficientes para sensibilizar o delegado Cunha. Ao dizer que a menor só sairia dali com ordem judicial, devolveu L.A.B. ao inferno. Nesse mesmo dia, achou prudente transferi-la para a sala dos escrivães.

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Na tarde seguinte, quando o pai de L.A.B. chegou à delegacia acompanhado de um conselheiro tutelar, o delegado Rodolfo Fernando Valle Gonçalves alegou que a adolescente havia fugido – e recusou-se a fazer um boletim de ocorrência registrando o sumiço da menina.

L.A.B. foi encontrada três dias mais tarde vagando no cais do porto. Contou que fora levada até lá por três policiais civis, que a ameaçaram de morte se não caísse fora da cidade.

Inquieta com os possíveis prejuízos eleitorais decorrentes da repercussão nacional do episódio, a governadora Ana Júlia Carepa prometeu afastar os diretamente envolvidos no absurdo. Reconheceu que outras cadeias do Pará reprisavam com frequência o mesmo espetáculo da promiscuidade e baixou um decreto proibindo homens e mulheres de dividirem a mesma cela – como se isso não fosse proibido pela legislação brasileira há alguns séculos.

Ana Julia foi a terceira mulher a cruzar o caminho da menina de 15 anos.

(A governadora não conseguiu se reeleger em 2010)

Hoje, o processo contra os protagonistas desse episódio ainda corre em sigilo no Tribunal de Justiça do Pará. Em tese, há 12 réus e uma vítima. O destino dos protagonistas informa que, na prática, existem 12 vítimas e uma ré. Os únicos que continuam encarcerados são os estupradores Beto Júnior Castro da Conceição e Rodinei Leal Ferreira, que já estavam atrás das grades quando cometeram o crime.

Declarados culpados no Processo Administrativo Disciplinar (PAD) instaurado pela corregedoria da Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe), os agentes prisionais Benedito de Lima Amaral e João de Deus Oliveira foram exonerados em 5 de dezembro de 2008. Absolvido, o agente Marcos Eric Serrão Pureza trabalha atualmente na Casa do Albergado, em Belém.

Marcos Eric, como os demais envolvidos, foi condenado por omissão, em primeira instância, a 2 anos e 8 meses de prisão em regime fechado. O Tribunal de Justiça do Pará concedeu-lhe o benefício do regime aberto.

Também foram exonerados os delegados Antônio Fernando Botelho da Cunha, Rodolfo Fernando Valle Gonçalves, Celso Iran Cordovil Viana, Danieli Bentes da Silva e Flávia Verônica Monteiro Pereira. Na denúncia, a promotora Ana Carolina Vilhena Gonçalves afirmou que todos souberam do que se passava e optaram pela omissão.

Ana Carolina destacou a participação de Antônio Cunha, que só tomou providências para a transferência da menor ao receber um ofício da Secretaria de Direitos Humanos do Pará, em 5 de novembro – 18 dias depois do flagrante –, e da delegada Flávia Pereira. “Em decorrência da conduta desta acusada, a vítima sofreu os mais diversos abusos em seus direitos”, descreve a denúncia. “Depois de lavrado o flagrante, nem ao menos um ofício requerendo sua transferência para uma penitenciária feminina foi confeccionado”.

(“Infelizmente todos foram afastados”, lamenta João Nascimento de Moraes, presidente do Sindicato dos Delegados do Estado do Pará (Sindelp). “Eles são vítimas de um sistema carcerário em frangalhos. Os culpados são, primeiro, o governo federal, depois, o estadual”. De acordo com Moraes,a demissão dos delegados extinguiu o vínculo com a polícia e, consequentemente, com o sindicato. A exceção é Rodolfo Gonçalves. Contratado como um “faz tudo” do Sindelp, recebe hoje pouco mais de um salário mínimo por mês. “Foi uma maneira que arrumamos para ele não morrer de fome”, justifica Moraes.)

Apesar de ainda responderem ao processo penal, os investigadores de polícia Adilson Pires de Lima e Sérgio Teixeira da Silva foram absolvidos por falta de provas no Processo Administrativo instaurado pela Polícia Civil. O assessor de imprensa do órgão, que só revelou seu prenome ─ Valrimar ─, limitou-se a informar que nenhum deles trabalha mais na comarca de Abaetetuba. Não disse para onde foram transferidos os dois acusados de lesão corporal grave e ameaça.

Embora não figure entre os réus, a juíza Clarice Maria de Andrade foi aposentada compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 20 de abril de 2010. Em 14 de junho de 2012, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) anularam a decisão por considerá-la “excessiva”. A determinação do STF foi publicada em junho deste ano, quando Clarice já fora nomeada juíza titular da comarca de Ananindeua.

L.A.B. esteve sob a proteção do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) até completar 18 anos. Em 6 de junho de 2010, segundo a Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal, migrou para outro programa destinado a adultos. Convidada a justificar a mudança, a Secretaria de Direitos Humanos, que até então respondera a todas as perguntas formuladas pelo site de VEJA, encerrou o assunto com uma desculpa nada esclarecedora: não podia fornecer “informações sobre pessoas que fazem parte dos seus programas de proteção, como forma de garantir sua segurança e integridade”.

Passados seis anos, os policiais que abandonaram L.A.B. no cais do porto de Abaetetuba conseguiram o que queriam. Eles continuam em liberdade. Lidiane Alves Brasil desapareceu.

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