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Augusto Nunes

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José Nêumanne: A água, a luz e o asfalto no sertão

São Francisco abençoa minha terra desde 1966, mas suas águas ainda não perenizam o Rio do Peixe

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 21h00 - Publicado em 14 mar 2017, 12h53

Publicado no Estadão

Eu tinha 15 anos e morava em Campina Grande quando as águas do Rio São Francisco apareceram na cidade sertaneja onde nasci: Uiraúna, a 480 quilômetros de João Pessoa, no mar, e 360 da Rainha da Borborema, que recebeu dia 10 a notícia alvissareira da chegada do Velho Chico a suas torneiras. Em 1966, o rio “da unidade nacional” chegou ao sertão do Rio do Peixe na forma de eletricidade 24 horas por dia. E a água santa se fez luz.

Pertenço, portanto, a uma geração de transição. Nasci à luz mortiça do candeeiro na casa de meu avô materno, Chico Ferreira, na zona rural do ainda distrito de Antenor Navarro, hoje São João do Rio do Peixe de novo. Dois anos depois, Uiraúna virou sede municipal, mas a iluminação da nova cidade era escassa: às 18 horas, quando o céu estava bem escuro, o maquinista Cabrinha ligava o motor a óleo diesel e este transmitia a energia mecânica para o dínamo combater a treva. O vigário, cônego Anacleto, ligava a difusora da matriz de Jesus, Maria e José e rezava a Ave Maria com o fundo musical da canção homônima na qual Gounod transformou uma fuga do gênio de Bach. Minha mãe nos reunia na calçada e dizia versos de Castro Alves no mormaço atro do Semiárido.

Àquela altura, o progresso tinha nome composto: Paulo Afonso, à época distrito de Glória, na Bahia, onde havia sido inaugurado o complexo hidrelétrico às margens da cachoeira do mesmo nome no Rio São Francisco a caminho do mar. Quando a eletricidade de 24 horas chegou àqueles confins em que a Paraíba cruza em seu extremo oeste com o Ceará e o Rio Grande do Norte, o lugarejo baiano era município e a Camargo Corrêa construía desde Cabedelo, cidade portuária da Grande João Pessoa, a BR-230, primeiro trecho da Transamazônica, símbolo da megalomania militar.

Até então, chegava-se a Campina Grande por uma estrada de terra esburacada numa viagem que exigia pernoite em Café do Vento, no centro geográfico do Estado. Só no dia seguinte chegava-se ao asfalto na Praça do Meio do Mundo, na Farinha, na subida para o Planalto da Borborema, onde os tropeiros paravam suas tropas de burro para lhes dar de beber no Açude Velho da Vila Nova da Rainha. Hoje na via pavimentada o trajeto faz-se em cinco horas, mesmo sem exagerar na velocidade.

A rede elétrica e a rodovia, contudo, em nada interferiram no regime de águas do sertão distante. A seca de 1958, em que testemunhei sertanejos famintos saqueando armazéns de mantimentos para não morrer de fome, repetiu-se em ciclos causando martírio e êxodo de pobres lavradores.

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Na sexta-feira 10 de março de 2017, as águas do São Francisco, que iluminam o sertão paraibano inteiro desde 1970, interromperam a angústia de 400 mil almas de Campina Grande, que bebem água do açude de Boqueirão de Cabaceiras. Este foi inaugurado em 1957 por Juscelino Kubitschek para resolver o crônico problema de falta de água da segunda maior cidade do Estado, até então atendida apenas pelo açude de Vaca Brava, no Brejo, que hoje nem água tem. Quando Michel Temer foi a Monteiro, no Alto Paraíba, para receber as águas da transposição, restava 3,7% do volume morto no reservatório, que tem o mesmo nome de uma obra-prima da literatura regional brasileira, o romance O Boqueirão, escrito em 1935 pelo pioneiro José Américo de Almeida.

Ainda assim, Michel Temer foi recebido de forma hostil. O governador do Estado, Ricardo Coutinho, que se opôs ao impeachment de Dilma Rousseff e o chama de golpista, compareceu à visita do presidente. Mas fez questão de registrar sua opinião de que o pai da obra não era o paulista de Tietê, mas o pernambucano de Caetés. O presidente não aceitou a pecha de usurpador e disse que a paternidade da transposição não era dele e de nenhum outro político, mas do povo brasileiro em geral e do povo nordestino em particular. Afinal, a transposição foi bancada por dinheiro público. Parece barretada demagógica, mas o fato é que o direito autoral político cobrado pelos devotos do PT é, no mínimo, duvidoso.

Atribui-se o patronato da transposição ao imperador D. Pedro II, que, em 1850, comovido pelo testemunho da seca ao visitar o Ceará, disparou uma bravata: “Venda-se o último brilhante da Coroa, contanto que um brasileiro não morra de fome”. Wanessa Campos, biógrafa de Maria Bonita, mulher do cangaceiro Lampião, não perdoa a demagogia imperial: “A Coroa continua intacta e muitos brasileiros ainda morrem de fome”.

A briga pela água no sertão ultrapassou os limites do Semiárido e pôs em discussão a sustentação ecológica do rio doador. O bispo de Barra, Bahia, Dom Luiz Flávio Cappio, fez greve de fome contra a obra. Paraibana, sertaneja do Vale do Piancó, a cantora Elba Ramalho não pôde apresentar-se num trio elétrico em João Pessoa por manifestar preocupação com o mesmo tema. O pároco de Uiraúna, meu amigo de infância, Padre Domingos Cleide Fernandes, também foi execrado por se preocupar com a possibilidade de a transposição degradar a vida do rio nascido em Minas.

O baiano Antônio Carlos Magalhães, adversário da obra, desafiou seu amigo e colega cearense Tasso Jereissati a apresentar um estudo sério sobre o tema. Se o convencesse, o próprio ACM apoiaria a obra. Lula presidente mandou iniciar a transposição em 2007. Pressionado pelos ambientalistas, garantiu em 2009 que encomendaria um estudo a respeito.

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Muito antes disso, em 1998, o tucano Tasso reuniu em Fortaleza respeitáveis especialistas em águas do mundo inteiro para debater o assunto. Os técnicos criticaram o projeto. Em suas palestras, contaram que água é um insumo muito caro para ser desperdiçado na evaporação em canais abertos como os que levam a água do “rio da unidade nacional” para Sertânia e Monteiro, assim como o que Ciro Gomes, sucessor de Tasso, construiu para levar água potável para a capital do Ceará. E previam que os nordestinos seriam execrados no futuro por terem empregado milhões de reais para desviar a água que desemboca no mar entre Alagoas e Sergipe para desaguar em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Em 24 de maio de 1998, o Jornal da Tarde publicou meu relato sobre o seminário no texto O açude de sal e o trem da água. Nele escrevi o seguinte: “Os 1.500 maiores açudes nordestinos guardam um volume calculado em 21 bilhões de metros cúbicos de água, 10 vezes a Baía da Guanabara, 100 vezes a Represa de Guarapiranga, que responde pelo abastecimento de 3 milhões de pessoas. Ou seja, teoricamente (e só em teoria, pois nunca se pode usar totalmente a água de um açude), esta seria água suficiente para o consumo de 300 milhões de pessoas, quase o dobro da população do País inteiro. Só que, segundo o secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio-Ambiente, Fernando Rodrigues, especialista em água, mas não em seca, apenas 20% do que poderia ser usado o é de fato, ficando 80% para contemplação estética e evaporação”.

Esta é a realidade dos fatos, mas quem liga pra ela? Da mesma forma, o aviso dos técnicos não foi ouvido na algaravia da guerra ideológica da pós-verdade na política brasileira. Levada aos trancos e barrancos sob Lula e descontinuada (como se diz hoje) sob Dilma, a transposição foi inaugurada pelo vice que assumiu o lugar dela depois do impeachment. É improvável que seus custos não tenham sido anabolizados pela corrupção avassaladora nos 13 anos, 4 meses e 12 dias dos dois desgovernos petistas. Mas prevalece a versão do senador Humberto Costa (PT-PE) ao Valor Econômico: “Todo o pessoal do governo, que nunca colocou uma pá de terra na obra, está querendo tirar uma casquinha”.

Com base no “dane-se a realidade” desse argumento parcial e irreal, Lula visitará o São Francisco correndo no leito do Alto Paraíba em 19 de março, data que os sertanejos consideram como limite para chuvas que interrompem quaisquer períodos de estiagem. Se não chover até então, fechar-se-á o mais prolongado ciclo de seca da História. E o padim Lula conta com a fé religiosa do povo para ressuscitar o mito de sua invencibilidade.

Na semana passada, choveu em Uiraúna, e o açude da Capivara, cujo nome homenageia meu bisavô, Coronel Alexandre Moreira Pinto, ganhou dois metros de água. Ou seja: alcançou 5% de seu volume morto. Como se vê, resta pouco a comemorar e muito a temer. Afinal, o Velho Chico, transposto para o Paraíba ainda não pereniza o Rio do Peixe, em cujas margens secas nasci e fui menino. Nem faz tanto tempo assim.

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