Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Imagem Blog

Augusto Nunes

Por Coluna Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

João e Euclides

Os dois permanecem como faróis da nacionalidade, a indicar os altos e baixos no percurso

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 30 jul 2020, 19h33 - Publicado em 20 jul 2019, 11h53

Roberto Pompeu de Toledo (publicado na edição impressa de VEJA)

João Gilberto morreu, aos 88 anos, no dia 6; Euclides da Cunha, aos 110 anos de sua morte, é o autor homenageado deste ano na Flip, a festa literária de Paraty. Por dez ou quinze dias se falará neles, o que é bom. João Gilberto e Euclides da Cunha têm em comum colarem-se a uma certa cara do Brasil. Euclides da Cunha, em Os Sertões, trouxe à tona um Brasil profundo, de crenças, de miséria e de rebelião, esmagado na Guerra de Canudos. João Gilberto figurou na primeira linha de um período de otimismo, de reinvenção e de confiança em que o Brasil poderia ser diferente e melhor. Euclides mostrou a cara de um Brasil como era; João acenou com um Brasil como poderia ser.

O “livro vingador”, como Euclides apelidou sua obra-prima, denunciou o engano que foi considerar a comunidade reunida em torno de Antônio Conselheiro um reduto de monarquistas insubmissos ao recém-­instalado regime republicano. Ele próprio um republicano, de início rendido à propaganda oficial, ao conhecer in loco a aglomeração de deserdados no sertão baiano descreveu-a como uma “sociedade primitiva” que “compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres”. Para o governo e o Exército, na inspirada prosa de Euclides, Canudos era a “urbs monstruosa”, a “civitas sinistra do erro”. Para ele próprio, ao tomar contato com o arraial, era uma “Troia de taipa”.

João Gilberto, baiano como os canudenses, refundou a música popular brasileira, com Tom Jobim e Vinicius de Morais, nos mesmos anos em que Guimarães Rosa publicava Grande Sertão: Veredas, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha lançavam as sementes do Cinema Novo, e em que os improvisos de Pelé e Garrincha levavam o Brasil pela primeira vez à conquista da Copa do Mundo. Sim, nós podíamos. Reinava no ar, no melhor momento da democracia inaugurada pela Constituição de 1946, a sensação de renascimento, de recuperação do tempo perdido, de que o futuro chegara, e era o que se esperava dele. Tal qual o futebol de Pelé, a música de João Gilberto causou maravilhamento mundo afora, dos Estados Unidos ao Japão.

Os Sertões percorre camada por camada a brutalidade da farsa oficial montada em torno dos fiéis de Antônio Conselheiro. No ato final, descreve as filas de conselheiristas degolados um a um, não sem antes se dobrarem a um impositivo grito de “Viva a República”. A degola, prática comum nos conflitos brasileiros, foi levada ao paroxismo em Canudos. O Conselheiro já havia morrido antes do fim do conflito, mas não escapou de ter o corpo desenterrado, o pescoço ceifado e a cabeça levada ao exame do professor Nina Rodrigues, em Salvador. “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”, escreveu Euclides. Acrescentou: “Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali (…) O sertão é homizio”.

Continua após a publicidade

João Gilberto foi no sentido contrário ao da retórica exuberante de Euclides. Sua arte era a de fazer muito com pouco. Ele era mestre em despir a canção de todo o supérfluo para, garimpeiro, extrair a pepita sob o aluvião. Sua versão de Aquarela do Brasil, um hino nacional vicário, que por isso convida a uma festa de bumbos e metais, comove pela redução a um fino sopro. Mesmo que a utopia de que João Gilberto foi um dos porta­vozes não se tenha realizado, e mesmo que a denúncia de Euclides não tenha evitado a repetição da barbárie, em outros locais e outros contextos, os dois permanecem como faróis da nacionalidade, a indicar os altos e baixos no percurso.

Só por insistência de repórteres o presidente Jair Bolsonaro acabou dizendo algo a respeito da morte de João Gilberto. Em junho ele lamentara no Twitter a morte de um certo MC Reaça, portador de “um grande talento”, e afirmou que seria sempre lembrado “por seu amor pelo Brasil”. Sobre João Gilberto, diante dos pedidos, limitou-se a um sumário: “Era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá o.k.?”. Bolsonaro foi contemplado com atributos de bom tamanho, como a sorte que o levou de improvável candidato a vencedor da eleição, mas a alma é pequena. O nome “João Gilberto” pode lhe ter disparado repetidos sinais de alarme: “arte”, “cultura”, talvez até mesmo “esquerda”, e ainda por cima, dado o alcance internacional do falecido, “cosmopolitismo” e “globalismo” — um coquetel de explodir-lhe a cabeça. Ou talvez Bolsonaro nem conhecesse o cantor. A Garota de Ipanema, no cânone presidencial, não vale os versos de MC Reaça: “As mina de direita são as top mais bela / Enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela”.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.