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Geografia da fome

O dinheiro que vai para o ralo do desperdício e as malas da corrupção falta para enfrentar a miséria

Por Almir Pazzianotto Pinto
Atualizado em 30 jul 2020, 20h36 - Publicado em 17 jan 2018, 07h01

Publicado no Estadão

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em 15/12 a pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais 2017, documento arrasador, conquanto não surpreendente ou inesperado. Mostra a fome no Brasil. Confirma que o País é pobre – é rico apenas na visão alienada de bilionários, corruptos e privilegiados.

Graciliano Ramos descreveu-a em Vidas Secas. Euclides da Cunha dela falou em Os Sertões. Ninguém, entretanto, o fez com mais profundidade do que Josué de Castro (5/9/1908-24/9/1973), o médico pernambucano reconhecido mundialmente, autor de vasta bibliografia sobre a matéria, em que se projetam Geopolítica da Fome, Geografia da Fome, Sete Palmos de Terra e um Caixão. Duas vezes deputado federal, embaixador do Brasil na ONU, presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), professor honorário de universidades estrangeiras, Josué de Castro foi vítima do alto comando revolucionário em abril de 1964, quando teve cassados os seus direitos políticos. Injustiçado, passou a residir em Paris, onde faleceu.

Em Geopolítica da Fome Josué de Castro observa que “a fome constitui um fenômeno de extrema variabilidade. No emaranhado e policrômico desenho da fome universal, podemos divisar surpreendentes matizes; desde os mais negros e impressionantes, da fome total, da completa inanição, transformando suas vítimas em verdadeiros espectros vivos, até os tipos mais discretos das fomes ocultas ou específicas, atuando sorrateiramente, quase sem sinais aparentes” (página 79).

O menino faminto de 8 anos de idade que desmaiou em escola pública de Brasília – fato minimizado pelo governador Rodrigo Rollemberg – é apenas um entre milhões de casos semelhantes. São crianças nascidas de famílias esquecidas, às quais falta o mínimo necessário para a subsistência. Se sobreviverem, crescerão subnutridas e analfabetas, até alcançarem a maturidade, carentes de recursos para a difícil disputa de espaço no exigente mercado de trabalho.

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O cenário desnudado pela Síntese dos Indicadores Sociais 2017 revela que “mais de 25 milhões de brasileiros, o equivalente a 25,4% da população, vivem na linha de pobreza e possuem renda familiar equivalente a R$ 387,07 – ou US$ 5,5 por dia, valor adotado pelo Banco Mundial para definir se uma pessoa é pobre”. Prossegue a notícia: “A situação é ainda mais grave se levadas em conta as estatísticas do IBGE envolvendo crianças de 0 a 14 anos de idade. No país, 42% das crianças se enquadram nestas condições e sobrevivem com US$ 5,5 por dia. As pesquisas de indicadores sociais revelam uma realidade: o Brasil é um país profundamente desigual e a desigualdade gritante se dá em todos os níveis”.

Informações publicadas no Relatório de Atividades da Associação Brasileira do Agronegócio relativo a 2016 revelam que em 2015 foram colhidas 97.043.705 toneladas de soja, 12.312.315 de arroz, 85.707.796 de milho, 3.107.911 de feijão, 22.756.807 de mandioca, 5.425.856 de trigo, 351.453 de amendoim; e que a produção de carne bovina foi da ordem de 7.613.163.153 quilos, 3.354.699.150 a de suínos, 12.990.348.875 a de frangos, de 24 bilhões de litros a de leite e de quase 3 bilhões de dúzias a de ovos. A fome não decorre da falta de alimentos, mas da injusta distribuição de rendas, da falência da educação, do colapso do ensino público, da ausência de trabalho para 13 milhões de desempregados e outros tantos subocupados em tarefas ocasionais ou intermitentes.

Geografia da Fome é de 1948 e Geopolítica da Fome, de 1951. Desde então duas medidas foram tomadas: a instituição do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), pela Lei n.º 6.321/1976; e do Bolsa Família, mediante a Lei 10.836, de 2004. Ambos, contudo, não foram a fundo no combate à pobreza e à fome, como revelam os indicadores do IBGE.

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É elevado o número de programas de televisão dedicados à alta culinária. Renomados cozinheiros esmeram-se na preparação de pratos fora do alcance da maioria da população, constituída por pobres, cujos filhos, subnutridos e doentes, tomam água açucarada pela manhã e comem um prato de angu no almoço.

A fome registrada por Euclides da Cunha em Os Sertões, mapeada e denunciada por Josué de Castro, permaneceu ignorada por sucessivos governos do PSDB, PT e (P)MDB, para me limitar aos últimos 30 anos. O dinheiro que vai para o ralo do desperdício e as malas da corrupção falta para enfrentar a miséria.

O trabalho infantil está relacionado ao nível de pobreza. Registra o IBGE: “Os dados do estudo indicam que, quanto menos escolaridade, mais cedo o jovem ingressa no mercado de trabalho. A pesquisa revela que 39,9% dos trabalhadores ingressaram no mercado de trabalho com até 14 anos”. Não surpreende a constatação de que a fome é mais grave nas Regiões Norte e Nordeste. Sempre foi assim. No mapa alimentar do Brasil, Josué de Castro coloca a Região Amazônica e o litoral nordestino como áreas de fome endêmica, o agreste nordestino como área de epidemias de fome, o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul como regiões de subnutrição.

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A situação pouco se alterou. Segundo o IBGE, quando se avaliam “os níveis de pobreza no país por estados e capitais ganham destaque, sob o ponto de vista negativo, as Regiões Norte e Nordeste, com os maiores valores sendo observados no Maranhão (54,4% da população), Amazonas (49,2%) e Alagoas (47,4%)”.

Em 2018 o salário mínimo será de R$ 954. A Bolsa Família, de R$ 85. O Brasil ocupa a 7.ª posição no ranking do desenvolvimento econômico e o 79.º no Índice de Desenvolvimento Humano, abaixo do Chile, do Uruguai, da Argentina.

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