Essa Paulista com as caras do Brasil
BRANCA NUNES “O sol há de brilhar mais uma vez. A luz há de chegar aos corações…” A música de Nelson Cavaquinho, cantarolada na voz do pedestre anônimo, embalava quem passasse, quase sempre caminhando apressadamente naquela tarde cinzenta de quinta-feira, pela Avenida Paulista. Ninguém parecia prestar muita atenção. Acostumados a cenas surpreendentes, limitavam-se a olhar […]
BRANCA NUNES
“O sol há de brilhar mais uma vez. A luz há de chegar aos corações…”
A música de Nelson Cavaquinho, cantarolada na voz do pedestre anônimo, embalava quem passasse, quase sempre caminhando apressadamente naquela tarde cinzenta de quinta-feira, pela Avenida Paulista. Ninguém parecia prestar muita atenção. Acostumados a cenas surpreendentes, limitavam-se a olhar com o canto dos olhos e seguir em direção a compromissos mais urgentes. Dos poucos que observavam o céu, alguns resmungavam frases incompreensíveis, outros sorriam resignados: outra tempestade se desenhava no horizonte.
Em São Paulo, quando chove, não importa a hora, o dia da semana ou o lugar em que se esteja: o trânsito fica insuportável. E sempre um pouco pior na Avenida Paulista: os carros não andam. Mas existem paulistanos que rezam para que isso aconteça: os vendedores de guarda-chuvas. Com as primeiras gotas, parecem brotar do solo e multiplicar-se, como os Greemlins do filme de Steven Spielberg, pelos 2,8 quilômetros da avenida. Cada um chega a juntar 200 reais.
Eles compõem o multifacetado universo formado por quase 1,5 milhão de personagens que trafegam diariamente pelas calçadas da avenida. A Paulista é um fascinante mosaico do Brasil. E um variadíssimo microcosmo, capaz de retratar os encantos e os infortúnios de sobreviver em São Paulo.
Inaugurada em 8 de dezembro de 1891, foi projetada pelo engenheiro uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, já com o objetivo de tornar-se a principal artéria da capital que logo começaria a ganhar feições de metrópole. O primeiro casarão foi construído em 1895. A partir daí, a Paulista seria o endereço dos maiores barões do café do começo do século XX.
Das antigas mansões, só duas permanecem quase intocadas: a Casa das Rosas, construção de 1935 localizada no número 37, e o chamado Casarão da Paulista, de 1905, que fica no número 1919. A primeira virou centro cultural. A segunda passou alguns anos sendo alugada para bazares e feiras. Hoje está fechada, esperando pacientemente uma restauração que nunca chega.
Nas décadas de 20 e 30, a avenida era palco de corsos carnavalescos e corridas de carro. Hoje, ali acontecem as grandes manifestações populares. Trata-se de virtualmente tudo, todos os dias. Celebra-se a paz ou defende-se a instituição da pena de morte. Atos de protesto e passeatas abrangem problemas que vão do direito dos animais à reinvindicações salariais de bancários, do fim da corrupção à liberação da maconha, das carências da educação às aflições da saúde.
A Paulista é agitada tanto pela passeata do Orgulho Gay, que mobiliza mais de 1 milhão de manifestantes, ou pelas multidões envolvidas na tradicionalíssima corrida de São Silvestre, disputada pela primeira vez em 1924.
Só em 1950 foram permitidas construções verticais na Avenida. Hoje, são raros os prédios com menos de 15 andares. É nesses arranha-céus que se abriga o maior centro empresarial financeiro da América Latina, responsável por 30% do mercado financeiro da cidade.
Na Paulista existem mais de 46 agências bancárias, 31 bancas de jornal, 29 estacionamentos, 20 sedes de consulados e nove farmácias. Há dezenas de bares e restaurantes, livrarias e lojas diversas, principalmente de calçados. Existem dois parques, Prefeito Mário Covas, inaugurado em 2010, e o Tenente Siqueira Campos, ou Trianon-Masp. Dentro deste parque, última amostra da mata que cobria São Paulo quando os jesuítas chegaram, há bancos e sombra. Do lado de fora, nada.
Das 280 salas de cinema da cidade, quase 240 se localizam em shoppings centers. A Paulista se orgulha de concentrar nas calçadas e imediações a maioria das 40 restantes. Existem na avenida espaços culturais notáveis: o Conjunto Nacional, a Fiesp, o Itaú Cultural, a Casa das Rosas ou o Masp, museu mais importante da América Latina, projetado em 1968 pela arquiteta Lina Bo Bardi. Seu vão livre tem 80 metros.
Entre tantas construções comercias, há 18 edifícios onde residem 5 mil pessoas. Para elas existem duas Paulistas: a noturna e a diurna. Durante a noite e a madrugada, a avenida dorme. Quem conhece algum desses apartamentos desfruta de um dos lugares mais tranquilos para moradores de São Paulo.
O mundo começa a mudar às 5h30 da manhã, quando desembarcam dos ônibus e metrôs os primeiros trabalhadores. O tráfego de veículos aumenta. Chega ao clímax a partir das 7 horas. Os camelôs anunciam produtos aos berros, os escritórios vizinhos logo estão lotados. Além de carros, ônibus, metrôs e bicicletas, os paulistanos que moram nos andares mais altos convivem com outro meio de transporte: o helicóptero. São Paulo possui a terceira maior frota do mundo, depois de Nova York e Tóquio. Dezesseis arranha-céus da Paulista possuem helipontos na cobertura. Só esses moradores das altitudes sabem também que incontáveis urubus voam sobre a avenida durante o dia, e abrem asas sempre sobre os mesmos edifícios.
A riqueza contrasta com a miséria dos mendigos nos canteiros ou sob os pilares das lojas. Eles vagueiam pela avenida durante o dia, dormem nos mesmos lugares e se tornam conhecidos dos comerciantes e moradores dos arredores.
É nos quarteirões da Paulista que se pode observar uma das cenas cada vez mais raras na maior cidade da América do Sul: gente andando na rua. Talvez esteja aí a explicação para tantas lojas de calçados na Avenida Paulista.