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Augusto Nunes

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Boechat, um homem bom

Que Deus o receba de braços abertos e com o mesmo sorriso que iluminou a vida de tantos ao seu redor

Por Ana Paula Henkel
Atualizado em 30 jul 2020, 19h58 - Publicado em 13 fev 2019, 18h21

Ana Paula Henkel (publicado no Estadão)

Num domingo de 2018, um menino de oito anos abordou o Papa Francisco numa visita à Paróquia de São Paulo da Cruz, no sul de Roma, e perguntou se seu pai, recém falecido e ateu, seria recebido por Deus no céu. Emocionado, o pontífice respondeu: “esse homem podia não ter o dom da fé, mas era um pai que criou um filho como você. Deus tem um coração de pai, como seria capaz de deixá-lo longe?”.

Lembrei emocionada deste momento tão bonito e delicado ao pensar em Ricardo Boechat, um ídolo não apenas para mim, mas para milhões de brasileiros. Argentino de nascimento como o Papa e ateu como o pai do menino romano. Meu coração não tem qualquer dúvida que o par mais vívido de olhos azuis que já conheci se abriu na frente de Deus há dois dias e eles puderam ver que tudo de bom que ele fez em 66 anos não foi em vão.

Nesta triste semana, testemunhamos que cada um tem seu próprio Boechat guardado na memória, por isso divido aqui com vocês o meu. Boechat sempre foi um apaixonado pelo meu esporte e nunca houve uma vez, entre as centenas de vezes que nos encontramos em competições, premiações ou apenas passeando no Leblon, que ele não me dissesse: “Aninha, que orgulho eu tenho do nosso vôlei!”. Independentemente do assunto que estávamos falando, era sempre com essa frase que ele se despedia. Ele gostava de comentar as partidas, fazia críticas, analisava nossa performance do último jogo, mas sempre com uma mensagem de incentivo, carinho e força. Ele torcia por nós de coração e, tenho certeza que falo por todos os atletas brasileiros do vôlei, o amor era recíproco.

Seu sorriso inconfundível nunca serviu de moldura para uma fala condescendente ou bajuladora. Boechat comemorava nossas vitórias, mas também cobrava nossos infortúnios. Se eu encontrasse com ele depois de uma derrota, sei que ganharia além de um abraço a devida puxada de orelha, dizendo claramente como poderíamos melhorar para os próximos jogos. Ele sabia do que estava falando e nós, profissionais do esporte, ouvíamos com atenção, respeito e reverência. Mais que torcedor, ele também era um eficiente analista comportamental do esporte e um conselheiro com uma visão crítica e muito embasada do vôlei que ele tanto amava.

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Um episódio que lembro com um sorriso em meio ao luto é quando comecei a despontar como revelação na seleção brasileira nos anos 90 e Boechat, em sua coluna, começou a me chamar de “nova musa do vôlei”. Como tudo que ele escrevia repercutia na imprensa, depois da terceira ou quarta vez, Bernardinho, técnico da seleção na época e que detestava essa história de musa disso e musa daquilo, uma vez me disse: “Olha, esse negócio de musa é complicado, tira o foco do jogo, para mim lugar de musa é no banco”. Encontrei com Boechat pouco tempo depois em um evento em São Paulo, agradeci o elogio, e disse que isso poderia me criar problemas, que Bernardinho estava bravo com essa história de musa e que eu não queria correr o risco de perder minha posição de titular por um detalhe como esse. Ele deu uma gargalhada e respondeu: “Não liga, Aninha, deixa que eu falo com o Bernardinho e resolvo isso”. Se eles se falaram ou não eu não sei, mas Boechat continuou me chamando de musa em sua coluna, eu não fui para o banco e sempre ríamos disso quando nos encontrávamos.

Em 2004, já atuando no vôlei de praia e tentando uma classificação para a Olimpíada no mesmo ano, encontrei com Boechat algumas vezes pelo Leblon. Eu estava numa padaria na Avenida Ataulfo de Paiva quando senti uma mão no meu ombro e a ouvi a exclamação: “Temos que derrubar as gringas, Aninha!”. Ele estava “cabreiro”, como ele mesmo disse, com o time das americanas Walsh / May. E logo emendou: “O  que está faltando? O que precisamos fazer? E se vocês sacassem na outra (Walsh)?”. Alguns anos mais tarde, em 2007, vencemos Walsh / May numa semi-final importante na etapa de Vitória do mundial, que contava pontos importantes para a classificação para a Olimpíada de Pequim em 2008, e exatamente como Boechat havia comentado, sacando na Walsh. Nas semanas seguintes a essa vitória, estávamos treinando no Leblon quando Boechat passou correndo no calçadão e, com aquele sorriso marcante e aos berros como se não houvesse mais ninguém na calçada, nos brindou com sua alegria pela nossa vitória: “Eu sabia! Eu sabia! Batemos as gringas! Mas que orgulho eu tenho do nosso vôlei!”. E continuando sua corrida matinal jogou vários beijos no ar para toda nossa equipe.

Boechat foi um dos maiores jornalistas que o Brasil teve, e apesar da vida diária atribulada com inúmeros telefonemas para apurar notícias, ato constante que lhe rendeu calos nas orelhas, a rotina jornalística ensandecida na TV e no rádio, e mais tantos outros compromissos como jornalista e figura pública, ele nunca se apressava numa conversa e fazia sempre do interlocutor o ponto central do encontro. Muitos falam do seu temperamento forte e obstinado, necessário para se tornar quem foi, mas o Boechat que conheci era um homem simples, que andava de sunga e camiseta pelo Leblon, que brindava os amigos que encontrava pelo caminho com uma alegria como se fosse a última vez que os veria. A última vez que encontrei Boechat foi nos primeiros meses de 2018. Do outro lado de uma rua no Leblon, ele abriu aquele sorriso que parecia nunca ter conhecido a tristeza, gritou mais uma vez como se não houvesse ninguém por perto “mas que orgulho eu tenho do nosso vôlei” e jogou um beijo no ar. Boechat, por tantos anos, foi de uma generosidade e de um carinho comigo que não sei se merecia.

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Quando vejo que Boechat está recebendo homenagens e elogios de todos os lados do espectro político, mesmo com seu destemor, seu compromisso com suas ideias e sua coragem de cobrar das autoridades tudo que via como errado, é sinal de que existe e sempre haverá espaço para o jornalismo que, além de competente, é intelectualmente honesto e com um compromisso sem ressalvas com o público, especialmente no rádio, um meio que cria uma sensação de intimidade tão intensa com o ouvinte que todos nós sentimos a perda não de um comunicador com um talento único apenas, mas quase um membro da família, um amigo de todas as manhãs.

Naquele domingo de abril do ano passado, o Papa Francisco disse a todos os presentes, segundo as reportagens da época: “Quem dera se todos nós pudéssemos chorar como este menino quando temos uma dor como ele tem em seu coração. Ele chorou por seu pai e teve a coragem de fazer isso na nossa frente, porque em seu coração há amor por seu pai. É um belo testemunho do filho que herdou a força de seu pai e, também, teve a coragem de chorar diante de todos nós. Se aquele homem era capaz de criar filhos assim, é verdade, ele era um bom homem”.

Boechat era pai de seis filhos e um bom homem. Que Deus o receba de braços abertos e com o mesmo sorriso que Boechat iluminou a vida de tantos ao seu redor. Vá em paz, querido e inesquecível Boechat. Que orgulho temos de você.

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