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Augusto Nunes

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A verdadeira herança maldita é a que inclui o naufrágio do sistema de segurança pública

Vivi muitos anos no Rio e mantenho com a cidade um sólido e tórrido caso de amor. Mas não sou malandro nem otário, o que me obriga a constatar que a ocupação do conjunto de favelas do Morro do Alemão não mudou, em sua essência, a realidade medonha. Foi animador contemplar a queda, em poucas […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 13h26 - Publicado em 4 dez 2010, 20h39

Vivi muitos anos no Rio e mantenho com a cidade um sólido e tórrido caso de amor. Mas não sou malandro nem otário, o que me obriga a constatar que a ocupação do conjunto de favelas do Morro do Alemão não mudou, em sua essência, a realidade medonha. Foi animador contemplar a queda, em poucas horas, da fortaleza aparentemente inexpugnável instalada há tantos anos no coração das trevas. Mas o Rio deste começo de milênio ainda é Medellín no fim do século 20.

Pouco importa se nenhuma quadrilha de narcotraficantes ou milícia formada por policiais bandidos exibe, isoladamente, as dimensões alcançadas em seu apogeu pelo Cartel de Medellin — uma das mais aterradoras organizações criminosas da história. Pouco importa se lá havia o Pablo Escobar que aqui não há — ainda. Somados, os pablos escobares que governam centenas de favelas se transformaram num inimigo mais temível e brutal que o mítico chefão colombiano morto nos anos 90. Somados, os microcartéis que controlam os morros cariocas mobilizam um exército fora-da-lei maior e mais letal que o similar de Medellín.

A invasão do Morro do Alemão, uma vitória evidente dos homens de bem, deve ser imediatamente reduzida a suas reais dimensões para impedir que as manifestações de alegria e o clima de otimismo sejam logo substituídos pela espécie de frustração que precede a rendição definitiva. O que ocorreu foi um louvável primeiro passo que, embora singularmente relevante, é sempre e só o primeiro passo. É apenas o início da caminhada extensa, arriscada e penosa.

Ao constatar que a polícia estadual seria insuficiente para garantir a ordem pública, e que não dispunha de meios para enfrentar militarmente um inimigo com poder de fogo extraordinariamente superior, o governador solicitou ao presidente o envio de tropas das Forças Armadas. Aprovado pelo chefe de governo, o pedido foi encaminhado aos chefes do Exército e da Marinha, que cuidaram da montagem da operação em parceria com a secretaria de Segurança Pública fluminense. Simples assim. O governador e o presidente não fizeram mais que a obrigação.

Pois bastaram as cenas dos delinquentes em fuga, dos blindados removendo as pedras do caminho, da gente honesta do morro festejando a passagem das tropas para que ambos emergissem  da penumbra fantasiados de napoleão-da-favela. Com apenas 13 Unidades de Polícia Pacificadora em funcionamento, o governador atribuiu o desencadeamento da onda de violência ao pavor que assalta todo traficante quando topa com uma UPP pela proa. Como se não faltassem UPPs em quase mil favelas. Como se a mera ocupação militar tivesse transformado o Morro do Alemão numa Avenida Delfim Moreira. Como se Cabral tivesse erradicado pessoalmente a corrupção policial endêmica.

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Lula reapareceu caprichando na pose de marechal da vitória. “Eu até já tinha resolvido visitar o Morro do Alemão”, gabou-se”. “Agora é que vou mesmo, para conversar com o povo e cumprimentar os soldados”. Pode também acabar aderindo ao interminável carnaval temporão de Nelson Jobim e aparecer de farda branca, espora e e penacho, com Sérgio Cabral fantasiado de ordenança. De novo, a dupla louvará o segredo do sucesso agora estendido à segurança pública: a perfeita harmonia entre o Planalto, o governo estadual e a prefeitura.

O governo municipal é só um espectador inerme desses tumores urbanos. A isso acabará reduzido o governo do Rio se insistir na fanfarronice e considerar derrotado o inimigo que só perdeu uma batalha. Os pastores da violência estão em liberdade e não pensam em aposentadoria. O governo Lula vai ompletando oito anos de omissão criminosa. Não existe sequer o esboço de um programa de segurança pública que mereça tal nome. Os presídios de segurança máxima prometidos em 2003 ou ficaram na discurseira ou parecem hoteis com janelas gradeadas. A Força Nacional de Segurança é uma piada de mau gosto.

Não há vestígios do Estado Democrático de Direito nas zonas de exclusão que não se limitam aos morros. Há também as periferias de muitas capitais. Há a vastidão de terras sem lei nas fronteiras, por onde passam patrulhas de transportadores de drogas que abastecem os batalhões de distribuidores. O Legislativo é uma fábrica de normas legais forjados para dificultar a prisão, abrandar a pena e melhorar a vida na cadeia. O Judiciário, como o governo, parece convencido de que a bandidagem é filha da injustiça social. E pune a sociedade tratando como jovens desajustados até assassinos psicopatas.

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“O Rio vai chegar em paz à Olimpíada de 2016″, repetiu o governador Sérgio Cabral. O direito de viver em segurança não é um privilégio decorrente da escolha da sede dos Jogos, nem uma cláusula do contrato com o COI. É um direito bem mais antigo que a Olimpíada. É também uma imposição constitucional. Ganhar a guerra declarada pelos ditadores dos morros é uma urgência nacional não porque 2016 vem aí, mas porque o Rio está para o Brasil como Medellín esteve para a Colômbia. A guerra só será vencida com uma ofensiva ampla, articulada e séria envolvendo os três Poderes e todos os governos.

É preciso reincorporar os territórios amputados pelos bandidos ao mapa real do Brasil. Reincorporá-los já, a qualquer custo e sem palavrório. Os brasileiros sensatos nunca mereceram a conversa fiada, a lengalenga, as molecagens dos xerifes de palanque. Agora a discurseira e a enganação passaram da conta. Tornaram-se tão exasperantes quanto o barulho dos tiros no morro.

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