A imprensa estrangeira enfim descobriu a Olimpíada da Ladroagem
A promessa de despoluir a Baía de Guanabara, feita primeiro durante a Eco-92 e refeita para os Jogos Olímpicos 24 anos depois, levará pelo menos outros 25
Uma reportagem do jornal francês Le Monde revelou nesta sexta-feira que a imprensa estrangeira demorou menos de um ano para descobrir o que os brasileiros já começaram a enxergar faz tempo. Como esta coluna vem alertando desde 2009, quando nasceu, depois da Copa da Roubalheira viria a Olimpíada da Ladroagem. Segundo a denúncia publicada por Le Monde, três dias antes da eleição que transformou o Rio em sede dos Jogos de 2016, uma empresa ligada ao empresário brasileiro Arthur Cesar de Menezes Soares Filho pagou US$ 1,5 milhões a Papa Diack, filho de Lamine Diack, então presidente da Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) e membro do Comitê Olímpico Internacional (COI). O pagamento do voto saiu do bolso dos brasileiros em geral e dos fluminenses em particular.
Conhecido entre amigos e desafetos pelo título de “rei Arthur”, o empresário, ex-dono do Grupo Facilitity, é investigado na Operação Calicute. Desfrutou anos da amizade e confiança do ex-governador Sérgio Cabral, preso em novembro passado. Entre os afluentes do rio de propinas que desaguou em contas de Cabral no Exterior figuram a reforma bilionária do Maracanã e as negociações para garantir a vitória do Rio na eleição olímpica. O vale-tudo para hospedar os Jogos movimentou fortunas. O legado prometido pelos organizadores é uma afronta aos pagadores de impostos.
Há menos de um mês, o site do jornal espanhol La Vanguardia descreveu a situação de parte da herança desastrosa. “Durante os Jogos Olímpicos Rio 2016, um dos motivos de maior polêmica foi a cor excessivamente verde da água de uma de suas piscinas”, registrou a publicação, evocando o dia em que as águas do Complexo Maria Lenk amanheceram aparentemente cobertas de limo. “Apenas quatro meses depois do fim dos Jogos Paralímpicos, o total abandono das instalações fizeram com que a cor ficasse completamente marrom”.
O vídeo que ilustra a reportagem (veja acima) mostra imagens de um Maracanã em ruínas, com o gramado imprestável, cadeiras quebradas e instalações destruídas. “Quando Neymar ganhou seu ouro olímpico, ninguém imaginou o destino do Maracanã, abandonado, sem luz e saqueado”, reafirma a legenda. “As águas onde Michael Phelps ampliou sua lenda agora estão estagnadas em um recinto que perdeu seu esplendor. Seis meses depois, as instalações Olímpicas do Rio se desmoronam. A Rio 2016 apodrece”.
Em setembro de 2011, um post da coluna relacionou promessas feitas por Lula, Sérgio Cabral e Eduardo Paes ao Comitê Olímpico Internacional para emplacar a candidatura do Rio. Entre as mais vistosas, delirantes, malandras, lucrativas ou simplesmente irresponsáveis, foram selecionadas 20, reproduzidas abaixo exatamente como apareciam no “caderno de encargos” que garantiu a escolha do Rio.
1. Entregar à iniciativa privada a administração do Maracanã, em regime de concessão, até julho de 2013.
2. Despoluir a Baía de Guanabara.
3. Transformar a Zona Portuária em um bairro residencial de entretenimento e turismo.
4. Plantar 24 milhões de árvores na cidade até 2016.
5. Criar uma política de tolerância zero ao desmatamento da Mata Atlântica, para acelerar a regeneração do Parque Nacional da Pedra Branca e da Floresta da Tijuca, e estender à medida aos mangues da Barra e às proximidades das instalações esportivas.
6. Tratar e reciclar 100% do lixo sólido gerado durante os preparativos e operação dos Jogos de 2016 em parceria com comunidades carentes.
7. Recuperar até junho de 2016 a Baía de Guanabara, além de rios e córregos, em particular o sistema lagunar da Barra da Tijuca.
8. Eliminar todos os lixões ilegais da cidade até 2010.
9. Criar novas estratégias para a reciclagem do lixo e enviar o entulho das novas construções para usinas de reciclagem.
10. Implantar mecanismos para reaproveitar a água das chuvas e um sistema de economia de energia elétrica com o uso de painéis solares nas instalações esportivas e nas vilas a ser construídas.
11. Gerar 50 mil empregos temporários e 115 mil permanentes em áreas como turismo, gestão de esporte, construção civil e comércio, entre outras.
12. Construir uma Vila Olímpica no terreno da Cidade do Rock com 17,7 mil camas, um centro de treinamento que reúna equipamentos de 11 esportes olímpicos e oito paraolímpicos, empreendimento que será habitado por cerca de 2.400 famílias após o término do evento.
13. Criar uma praia particular para os atletas (Reserva).
14. Implantar o projeto Jovens Embaixadores: a partir de março de 2015, alunos das escolas do Rio estudarão os valores Olímpicos e Paraolímpicos, os esportes e também a cultura dos países que participarão das Olimpíadas.
15. Investir, até 2012, R$ 3,35 bilhões no Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci) para implantar medidas preventivas de combate à violência.
16. Criar uma força única e integrada de segurança sob a coordenação da Secretaria Nacional de Segurança Pública.
17. Investir R$ 731 milhões (em valores de setembro de 2009) em projetos de segurança para o evento.
18. Ter, em 2016, 100% da frota de ônibus do Rio equipada com combustíveis limpos, como o biodiesel e o etanol.
19. Criar barreiras acústicas para os novos corredores de transporte, com o plantio de árvores ou paisagismo.
20. Concluir a linha de metrô até a Barra da Tijuca.
Dessas obras, uma das poucas visíveis a olho é a linha 4 do metrô, ligando a Zona Sul à Barra da Tijuca. Entregue com três décadas de atraso em relação ao cronograma original e uma estação a menos (a sexta e última deve ser concluída em 2018), um relatório do Tribunal de Contas do Estado divulgado em novembro de 2016 constatou que o superfaturamento engoliu R$ 2,3 bilhões. Também saíram do papel — ambas por quantias amplamente superiores às previstas — a revitalização da região portuária e a melhoria no sistema de transporte, que incluiu o VLT e o BRT.
Em contrapartida, as demais promessas estão arquivadas nas cabeças baldias dos vendedores de nuvens. “Vamos entregar tudo absolutamente no prazo, será uma marca desta Olimpíada”, delirou Eduardo Paes em 2015, numa resposta a críticas de Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI). “Para mostrar que o Brasil consegue fazer as coisas no prazo, no custo e de maneira adequada”, gabou-se o prefeito. Foi assim com o plantio de 24 milhões de árvores — que subiu para 34 milhões em 2012, quando o então secretário estadual do Meio Ambiente, Carlos Minc, considerou tímida a miragem inicial. As mudas efetivamente plantadas foram 5,5 milhões.
Nenhuma das metas ambientais foi alcançada. A despoluição da Baía de Guanabara, prometida durante a Eco-92 e, 24 anos mais tarde, para os Jogos Olímpicos, terá de esperar pelo menos mais um quarto de século. Antes da Olimpíada, o governo anunciou que trataria 80% do esgoto despejado num dos maiores cartões postais do Rio. Depois, festejou o índice inferior a 50%: “Se não chegarmos a 80% de despoluição, o importante é que saímos de 17% do esgoto tratado para 49%”, comemorou o governador Luiz Fernando Pezão em março de 2015. “Vai ficar como legado para a cidade”.
As lagoas da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá continuam imundas como sempre. E a ideia de liberar a Lagoa Rodrigo de Freitas para banhistas foi abandonada no mesmo minuto em que a cidade venceu a disputa contra Madri, Tóquio e Chicago naquele remoto 2009, em Copenhague. Os Jogos não deixaram para o Brasil nem mesmo o legado intangível propagado pelos governos federal, estadual e municipal.
Uma reportagem publicada neste domingo no Estadão descreveu a situação de alguns medalhistas brasileiros depois que a tocha se apagou. Rogério Micale, técnico do dourado time de futebol masculino, está desempregado. Sem dinheiro e sem equipe, Felipe Wu, medalha de prata no tiro, também não pode preparar-se adequadamente para repetir a façanha. Das 10 fontes de renda de Arthur Zanetti, estrela da ginástica artística, restam três (Bolsa Pódio, Força Aérea Brasileira e Adidas). E Poliana Okimoto, primeira mulher brasileira a conquistar uma medalha olímpica em esportes aquáticos, perdeu o patrocínio dos Correios.
Entre os monumentos à incompetência, à corrupção e à insensibilidade dos organizadores, nenhum é mais desolador que o Maracanã entregue às traças. A dramática novela começou no fim dos Jogos, quando o Comitê Olímpico Rio 2016 tentou devolver o estádio à concessionária Maracanã S/A, liderada pela Odebrecht, com 7 mil cadeiras a menos, vidros, portas e balcões destroçados. Como o contrato estabelecia que o estádio fosse devolvido como estava ao ser repassado provisoriamente ao comitê, a concessionária se recusou a recebê-lo de volta. Em janeiro deste ano, a Justiça determinou que a Odebrecht reassumisse a administração do Maracanã. Um mês depois, o grupo francês Lagardère fez uma oferta, ainda sem resposta: pagaria R$ 60 milhões para tornar-se responsável pelo estádio mais famoso do mundo.
Em junho de 2016, pouco depois que o governo do Rio de Janeiro decretou calamidade financeira, Eduardo Paes concedeu uma entrevista coletiva para explicar que a Olimpíada não está entre as causas da derrocada financeira do Estado. “A crise econômica do Brasil veio ano passado e a Olimpíada está montada há muito tempo”, alegou. “Isso foi porque, desde o início, o conceito da nossa Olimpíada é fazer coisas sem exagero, sem elefantes brancos, sem coisas que permanecessem sem uso depois”. A reforma do estádio que precisa novamente ser reformado custou R$ 1,2 bilhão — o dobro do valor previsto. Virou um elefante cinza.
Se acreditasse no que diz, Eduardo Paes não perderia a chance de exibir-se para a multidão nas provas mais concorridas — e saborear a popularidade de dimensões cósmicas. Em vez disso, viu a maior parte dos Jogos pela TV ou escondido na tribuna das autoridades.