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Augusto Nunes

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A ilha-presídio ficou sem o chefe supremo dos carcereiros

Como em 1959, e como no ano em que encontrei Fidel, também neste novembro de 2016 há em Cuba uma economia asfixiada pela monocultura da cana, prostitutas demais em Havana e uma ditadura a sepultar

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 21h13 - Publicado em 29 nov 2016, 13h12

Atualizado às 13:12

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A morte do mais antigo ditador do planeta levou-me de volta à noite de 18 de dezembro de 1987. Vejo-me no imenso salão de festas do Ministério das Relações Exteriores de Cuba, no meio da multidão de convivas de uma recepção oferecida pelo governo, fazendo o que fizeram antes daquela sexta-feira (e continuariam a fazer até sexta-feira passada) todos os jornalistas estrangeiros que passaram por Havana desde janeiro de 1959: esperando Fidel Castro.

Aguardavam a aparição outros 11 jornalistas brasileiros e 28 deputados paulistas, todos convidados pela VASP para o voo inaugural da rota São Paulo-Havana. Lembrei que faltavam só 48 horas para a viagem de retorno e saí à procura do diplomata cubano que acompanhava a comitiva brasileira desde o desembarque no dia 11. “Ele vem ou não vem?”, repeti a pergunta formulada a cada meia hora por algum de nós. Ouvi a resposta de sempre: “O Comandante gostou muito da ideia de conversar com vocês. Ele vai aparecer a qualquer momento”.

Fidel frequentemente não aparecia, mas gostava mesmo de conversar.  Gostava tanto que a fila de candidatos a meia hora de prosa não cabia na agenda e, como a fila não andava, os enfileirados se distraíam variando o ponto de espera. No sábado e no domingo, com a ansiedade de noivo na porta da igreja, esperei o Comandante no saguão do Hotel Riviera. Passei a segunda e a terça de prontidão em dois restaurantes célebres, La Bodeguita del Medio e El Floridita, caprichando na pose de Ernest Hemingway quando jovem.

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Em homenagem ao escritor que bebeu todas quando viveu por lá, tracei meia dúzia de mojitos no bar do primeiro e oito papa dobles no bar do segundo. Achei melhor prosseguir a espera na piscina do hotel quando comecei a ver a miragem de Fidel em dobro. Na quarta, esperei quatro horas na fila da sorveteria Coppelia até chegar ao balcão e pedir o famoso sorvete de limão que tinha acabado quatro horas antes.Na quinta, de volta ao Floridita, descobri que poderia esperar o chefe supremo brincando de figurante de filme de época.

No fim dos anos 80, a capital cubana não saíra dos 50, gritava a paisagem arquitetônica implorando por pinturas, retoques e outras urgências restauradoras. Nem sairia tão cedo, confirmavam os carrões americanos que sacolejavam pelas ruas. Um garçom me contou que qualquer veículo poderia ser usado como táxi. Bastava pagar 1 dólar e dizer o destino. Incrédulo, fui para a calçada, acenei para um Studebaker verde e o motorista parou. O garçom não estava mentindo.

Nas duas horas seguintes, pela módica quantia de três dólares, esperei Fidel num Oldsmobile vermelho, num Chevrolet rabo-de-peixe azul e num Buick de cor indefinida que me devolveu ao hotel. Acordei na sexta-feira perguntando a um jornalista que ano era hoje e em que mês estávamos. Dezembro, 1987, ele informou com expressão intrigada. Avisei que iria dormir mais um pouco e pedi-lhe que me chamasse uma hora antes do começo do coquetel.

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Estava no terceiro daiquiri quando a frase multiplicada por centenas de vozes flutuou sobre o oceano de cabeças: “É ele!” O funcionário do governo chegou correndo para dizer, ofegante, que era ele mesmo, e que seríamos recebidos dali a duas horas. Aproveitei o tempo para espantar-me com a tremenda boca-livre financiada pelo governo. Se o povo visse aquilo, constatei em cinco minutos de contemplação, o regime comunista não chegaria à sobremesa.

Extensa, espessa e sólida como um píer inglês, a bancada do bufê suportava uma assombrosa procissão de frutos do mar.Lagostas, camarões, siris e caranguejos de dimensões amazônicas, um tsunami de mariscos e ostras, cardumes de peixes de espantar o velho Santiago imortalizado por Hemingway — parecia um banquete patrocinado por algum Nero de filme épico italiano. E então me surprendi com a descoberta: naquele salão havia até gente gorda.

Fazia oito dias que zanzava por Havana e só vira gente magra. Regime eficiente é isso aí, comentei com um deputado amigo. O governo jurava que ninguém morria de fome, mas nenhum cubano comum comia o suficiente para matá-la. Esse luxo era para frequentadores de recepções oficiais. Admirava uma lagosta abraçada a dois camarões quando me bateu a certeza de que todos os gordos da ilha estavam lá. Beiravam os 70, calculei. Tentava entender como é que eles explicavam aos magros aquelas arrobas a mais quando vi o diplomata cubano me acenando com espalhafato.

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O grande momento chegara. Juntei-me ao grupo de jornalistas e fomos todos para uma sala com quatro poltronas e dois sofás de bom tamanho. Cinco minutos mais tarde, a porta se abriu e Fidel enfim apareceu. Aos 61 anos, 28 dos quais desfrutados no comando da ilha, trajava uma farda verde-oliva bem cortada e parecia em ótima forma física. De pé, constatei que nossos queixos se alinhavam na mesma altitude. Ele tinha, portanto, entre 1m85 e 1m97, incluindo o salto carrapeta do coturno preto. Só alcançava 2 metros na imaginação dos devotos.

A expressão satisfeita, o olhar confiante e o que disse ao longo de 120 minutos reafirmaram que o ditador sessentão adorava o emprego e pretendia mantê-lo enquanto vivesse. Com a voz de falsete que ecoava horas a fio nos comícios patrióticos na Praça da Revolução, mostrou que para tudo tinha uma resposta insincera na ponta da língua. Consegui fazer-lhe duas perguntas. Primeira: o que achava das mudanças em curso na União Soviética depois da chegada ao poder de Mikhail Gorbachev?

Fidel afirmou que precisava examinar com mais atenção o que resultaria da glasnost (“transparência”, em russo) e da perestroika (“reorganização”). Como se não estivesse insone há muitos meses com as profundas reformas políticas e econômicas embutidas nas duas palavras que decretariam, entre tantas outras implosões históricas, a queda do Muro de Berlim em 1989, a dissolução do Leviatã comunista em 1991 e, por consequência, o sumiço da fonte de recursos financeiros que garantira nos 30 anos anteriores a sobrevivência de Cuba.

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Segunda pergunta: se o entrevistado garantia que Cuba era uma nação democrática, como explicar a inexistência de eleições e a existência de presos políticos? Sem ficar ruborizado, Fidel qualificou de criminosos comuns todos os enjaulados na ilha-presídio e reiterou o sistema eleitoral prescindia de candidatos oposicionistas para mostrar-se muito mais eficaz que o vigente, por exemplo, nos Estados Unidos. Terminado o encontro, cumprimentei o entrevistado e voltei ao salão de festas. A maioria dos jornalistas sitiou Fidel e só levantaram o cerco depois da conquista de um autógrafo.

Em dezembro de 1958, quando o jovem Fidel Castro preparava a tomada de Havana, havia em Cuba uma ditadura a derrubar, uma economia asfixiada pela monocultura da cana e prostitutas demais. Em dezembro de 1987, nada havia mudado. Passados quase 30 anos, ao anunciar a partida do chefe supremo dos carcereiros, o irmão e herdeiro Raúl Castro apossou-se de vez da ilha-presídio congelada na primeira metade do século 20: agora como antes, há prostitutas demais em Havana, um oceano de canaviais asfixiando a economia e uma ditadura a sepultar.

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